Folha de S. Paulo
Politicamente, Gil se comportou como o
criador que ausculta o entorno com atenção religiosa
Em Salvador, algum tempo depois do golpe de 64, um elefante ainda parecia estar deitado sobre os corpos e as esperanças de toda uma geração de universitários. Raros eram os momentos públicos de distensão pessoal.
Num desses momentos à noite, num bar onde se comia fatia de pizza no balcão, irrompe um migrante e encanta os presentes com boa voz e uma toada sertaneja. Animado, um jovem em elegantes calça e paletó sem gravata tira de um estojo um violão e passa a acompanhar o cantor com uma destreza invulgar. Por instantes, o mundo parecia melhor. Mas súbito aparece um policial militar, que diz ao violonista: "O sereno não é mais permitido!"
O jovem era Gilberto Gil, que se formava na época em administração, mas dele já se sabia em círculos restritos como um virtuoso musical. Eu o conheci ali e, em várias etapas da vida subsequente, pude acompanhar a sua trajetória fulgurante na música, assim como em intervenções felizes na política nacional.
Menor que fosse, entretanto, o episódio do bar me deixou a impressão tenaz de que a obra criadora desse artista era um modo de resposta àquela proibição que violava a essência do estar-junto alegre da gente comum, isto é, o "sereno". Em tudo o que ele fez e faz, existe afirmação da vida, um "é permitido, sim".
Não se trata simplesmente de ir contra as regras, mas de fazer frente às mumificações do poder em todas as latitudes. Múmias costumam ser fantasias de eternização da vida do que já morreu. Celebrar a vida concreta é um modo de driblá-las.
Numa entrevista de décadas atrás, Gil se explicaria: "Eu sou muito
celebratório. Por meio da música, celebro a possibilidade do júbilo, do
encontro, da egrégora, do grupo, da energia que se põe em movimento aglutinador
com relação a todas as cabeças, todas as mentes, todos os corações. Isso é
próprio da arte. Eu sou um radical da religiosidade na arte".
Nada disso é mera retórica: nele reside a tônica de que a relação do artista
com o povo é a sacralidade. Ao contrário da política, que dessacraliza. No
entanto, politicamente Gil se comportou como o criador que ausculta o seu
entorno com atenção religiosa.
No Ministério da
Cultura, as reuniões de trabalho com assessores e diretores dos
órgãos vinculados prescindiam de barreiras hierárquicas, todos tinham voz e
escuta. Dali partiram iniciativas seminais, como os pontos de cultura, reformas
de museus, seminários e a implantação de bibliotecas municipais.
O samba e a capoeira foram contemplados como patrimônios imateriais. Com
Gilberto Gil, o tempo da cultura é Tempo-Rei de transformações.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".
Um comentário:
Excelente texto e excelente artista,Gil é o que há!
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