Presidente golpista
Folha de S. Paulo
Bolsonaro barganha com Congresso liberdade
para atacar a democracia; isso tem de acabar
O presidente da República se empenha em
destruir as eleições periódicas no Brasil. Como o êxito é improvável, a sua
segunda linha de fogo é a de conturbar a vida cívica nacional, o que não
dispensa a incitação de arruaças e sublevações.
É preciso que seja impedido pelas forças
vivas da democracia.
Organizações de Estado que construíram
reputação de profissionalismo ao longo das últimas décadas se atolam na lama da
marcha autoritária. As Forças Armadas e o Itamaraty se metem em conspiratas
contra as urnas eletrônicas.
Convidaram-se dezenas de embaixadores
estrangeiros para um insólito ataque, recheado de mentiras
repetidas, do chefe de Estado à cúpula do Judiciário do seu próprio país.
Rebaixa-se a diplomacia brasileira às fossas da conivência golpista.
O presidente do Senado apôs à gravíssima
investida algumas
palavras de bom senso político. Acabou o momento de debater o
sistema de votação. A emenda que estabelecia a impressão do escrutínio foi
derrotada ainda na Câmara.
O presidente da Casa dos deputados calou-se, como tem se calado sobre os pedidos de impeachment acumulados em sua gaveta. Cúmplice de um chefe de governo que na opinião desta Folha há muito perdeu as condições de permanecer no cargo, acomoda-se ao casamento de interesses com o Planalto, que lhe transfere o controle das manivelas da execução do Orçamento.
Dinheiro em troca da tolerância ao
bonapartismo —eis o pacto que sustenta o presidente da República no Congresso
Nacional.
O governante não gasta energia com
programas, não entra no jogo parlamentar para promover políticas públicas, não
batalha por prioridades da gestão. Entrega os impostos cobrados dos brasileiros
à rapinagem clientelista desde que o deixem livre para metralhar sustentáculos
da Carta democrática.
É um jogo perigoso. Abona o chamamento a
rebeliões fascistoides em caso de derrota eleitoral. Flerta com as baionetas a
que o tirano gostaria de recorrer na primeira oportunidade. A representação
sucumbe ante as rebeliões; o Parlamento morre sob as baionetas.
Da comunidade política, portanto, precisa
partir a reação contra a escalada subversiva do presidente da República. Todos
os líderes partidários devem uma manifestação urgente de apreço inequívoco
pelas regras básicas da democracia.
A votação
ocorrerá pela urna eletrônica, os resultados serão obedecidos, os
eleitos tomarão posse nas datas previstas, e os derrotados insatisfeitos terão
a via única do recurso judicial para manifestar suas queixas. A violência e o
tumulto não serão admitidos.
Basta de negociar com promotores da
ditadura.
Mentiras de Bolsonaro são ato de campanha
O Globo
Presidente prepara discurso para, em caso
de fracasso, tornar um inferno a vida de seu sucessor
A apresentação de 50 minutos sobre o
sistema eleitoral que o presidente Jair Bolsonaro fez diante de algumas dezenas
de representantes de missões diplomáticas estrangeiras na última segunda-feira
variou, como era previsto, entre a mentira e o delírio. Bolsonaro é um político
em campanha, cuja pontuação nas pesquisas tem sido sofrível. Essa é a razão
para mais essa pantomima a que submeteu o Brasil. Seu desempenho foi
constrangedor a ponto de ninguém aplaudir no final — e de o próprio Bolsonaro
ter de lembrar à plateia que tinha terminado.
Prova de fraude eleitoral, obviamente ele
não apresentou, pois prova não há. As urnas eletrônicas e o sistema de apuração
já foram submetidos a toda sorte de teste e estão entre os mais seguros e
eficazes do mundo.
A necessidade de criar um discurso que
garanta sobrevida a seu grupo político diante de uma derrota provável é uma
explicação mais plausível para o teatro diplomático do que a tantas vezes
anunciada tentativa de golpe de Estado. Não que o cenário pós-eleitoral se desenhe
tranquilo, mas Bolsonaro se revela incapaz de alinhar as forças necessárias
para ter sucesso numa tentativa de virada de mesa.
O Legislativo não embarcaria na aventura,
até porque a eleição de deputados e senadores depende das mesmas urnas eletrônicas
que elegem o presidente. São veementes as declarações em apoio ao sistema
eleitoral do presidente do Senado e do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). E,
apesar de silenciar diante das mentiras de Bolsonaro, o presidente da Câmara,
Arthur Lira (PP-AL), comandou a votação em que as teses bolsonaristas sobre o
voto impresso foram derrotadas.
O Supremo Tribunal Federal (STF) e o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), escolhidos como nêmesis por Bolsonaro, têm
reagido com energia e propriedade a todas as tentativas de deslegitimar o
sistema eleitoral. Basta lembrar a declaração do ministro Edson Fachin,
presidente do TSE, depois do discurso aos diplomatas: “É hora de dizer basta à
desinformação e hora também de dizer basta ao populismo autoritário”. O TSE
também desmentiu uma a uma as mentiras de Bolsonaro.
Bolsonaro, ao contrário do que pretendia,
não conseguiu nenhum tipo de apoio no exterior e enfrenta resistências fortes
no setor produtivo. As Forças Armadas são a instituição em que o bolsonarismo
deposita suas esperanças, diante da adesão aparente do ministro da Defesa,
Paulo Sérgio Nogueira, às teses estapafúrdias sobre as urnas eletrônicas.
Mas há uma diferença entre a decisão
política — absurda, é verdade — de apoiar o discurso mentiroso do presidente e
uma quartelada. A perspectiva de que a cúpula militar se mobilize para evitar a
votação ou para impedir a posse de outro presidente que não Bolsonaro hoje não
passa de especulação sem lastro na realidade.
Bolsonaro é um político que trabalha na cizânia, depende dos inimigos para se justificar. Ele prepara tudo para, em caso de fracasso, tornar um inferno a vida de seu sucessor, com apoio da base aguerrida convencida de suas mentiras (era ela a audiência almejada do discurso, não os diplomatas). Tal comportamento promete gerar uma tensão institucional jamais vista. Mas a democracia brasileira tem condições plenas de resistir. As reações ao discurso de Bolsonaro demonstram que o Brasil é muito maior e muito melhor que ele
Bolsonaro desonra o Brasil
O Estado de S. Paulo
Novo ataque de Bolsonaro ao sistema eleitoral é gravíssimo. MP, Judiciário, partidos e sociedade precisam mostrar que o Brasil, apesar de Bolsonaro, não é uma republiqueta
Não há palavras para qualificar a gravidade
do que o presidente Jair Bolsonaro fez na segunda-feira passada, na reunião com
embaixadores estrangeiros. Ele disse ao mundo que o Brasil não é uma democracia
confiável. É um ato absolutamente inédito e insólito, que ofende as
instituições nacionais, humilha o País perante a comunidade internacional e
envergonha toda a população. O presidente da República – chefe de Estado e
chefe de governo – pediu que as nações estrangeiras não acreditem no País e em
suas instituições. Segundo Jair Bolsonaro, o sistema de votação brasileiro não
é a referência internacional que, até agora, o mundo sempre reconheceu e
admirou. Seria uma farsa que ele, sem nenhuma prova, munido apenas de
desinformação, veio desvelar.
Com a reunião de segunda-feira, Jair
Bolsonaro ratificou que não tem nenhum limite. Se chegar à conclusão de que
avacalhar o País perante toda a comunidade internacional pode render-lhe algum
benefício – eleitoral, golpista ou o que quer que seja –, ele o faz sem
pestanejar. Não há razão pública, ou consideração sobre a imagem do País, capaz
de detê-lo. Não há nem sequer resquício de vergonha pessoal. Se seus devaneios
lhe ordenam que convoque embaixadores estrangeiros e lhes comunique que a
eleição pela qual se elegeu foi uma fraude – e, por tabela, que a próxima
também será –, Jair Bolsonaro cumpre sem pestanejar. Perante tal desfaçatez, é
insuficiente afirmar que não há respeito ao cargo. Bolsonaro demonstra que, a
despeito de bradar que o Brasil está “acima de tudo”, não tem o menor apreço
pelo País.
Na reunião com embaixadores estrangeiros,
Jair Bolsonaro traçou uma linha no chão. Não é possível ficar indiferente a tão
explícito ato de desprezo pelo País. Não é possível alegar que são apenas maus
modos, excessiva espontaneidade ou imponderável recusa a seguir protocolos. Há
um presidente da República que ataca e desonra o próprio País. É assim que Jair
Bolsonaro protege a soberania nacional? É assim que cria as condições para o
desenvolvimento da economia nacional? É assim que defende os interesses
nacionais perante a comunidade internacional?
Já na segunda-feira, a Justiça Eleitoral
rebateu, uma a uma, todas as falsas alegações apresentadas por Jair Bolsonaro
aos embaixadores. Segundo o serviço de notícias americano Bloomberg, os questionamentos do
presidente Bolsonaro eram todos “velhas e refutadas teorias da conspiração”. “É
muito grave acusação de fraude, de má-fé, a uma instituição mais uma vez sem
apresentar prova alguma”, disse o presidente do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), ministro Edson Fachin.
De fato, na fala de Jair Bolsonaro não
houve nada de novo. Nada do que disse aos embaixadores era apto a levantar
alguma suspeita sobre o sistema eleitoral brasileiro. No entanto, a absoluta
falta de fundamento e credibilidade não retira a gravidade das palavras de Jair
Bolsonaro, que merecem cabal reprovação. Afinal, ao difundir mundo afora
falsidades sobre as urnas eletrônicas, Jair Bolsonaro questiona a legitimidade
de todo o regime democrático brasileiro, bem como de todos os eleitos,
inclusive seus filhos.
Além de defender a segurança das urnas e a
lisura do processo eleitoral, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG),
fez importante constatação: “Esses questionamentos (de Bolsonaro) são ruins para o Brasil sob todos os
aspectos”. A atitude de Jair Bolsonaro contra as urnas – cada dia fica mais
evidente que é uma campanha anti-Brasil – não gera nada de bom.
Inexplicavelmente, tendo em vista o seu
cargo e, compreensivelmente, tendo em vista seu histórico público, o presidente
da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), preferiu o silêncio depois da reunião do dia
18. É com essa conivência que Jair Bolsonaro se sente seguro para continuar
cometendo impunemente crimes de responsabilidade contra o exercício dos
direitos políticos.
Mas, como falou Edson Fachin, “é hora de
dar um basta à desinformação e ao populismo autoritário”. Ministério Público
(MP), Judiciário, partidos políticos, parlamentares e sociedade civil podem e
devem reagir. Ao contrário do que disse Bolsonaro, o Brasil não é uma
republiqueta.
Adolescentes em risco crescente
O Estado de S. Paulo
Levantamento do IBGE aponta tendências preocupantes no comportamento de alunos do 9.º ano do ensino fundamental: o consumo de álcool e drogas cresce e cai o uso de preservativos
Uma comparação inédita de pesquisas
realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) entre
2009 e 2019 apontou tendências preocupantes no comportamento de adolescentes,
especialmente de meninas, em todas as capitais do País. Os dados, anteriores à
pandemia de covid-19, mostram que cresceu a parcela de quem já experimentou
bebida alcoólica e drogas ilícitas, ao passo em que houve queda no uso de
preservativos. A insatisfação com o próprio corpo, seja por quem se acha gordo
ou magro demais, também aumentou.
As informações foram coletadas na Pesquisa
Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), em parceria com o Ministério da Saúde e
apoio do Ministério da Educação (MEC). Em suas quatro edições, nos anos de
2009, 2012, 2015 e 2019, a PeNSE teve foco em alunos do 9.º ano do ensino
fundamental, na rede pública e particular. Os levantamentos mais recentes,
porém, incluíram amostras na faixa etária de 13 a 17 anos.
Ciente das diferenças metodológicas de cada
edição, o IBGE promoveu a harmonização estatística dos dados, a fim de
possibilitar a comparação. Nem todas as informações, porém, estão disponíveis
nos quatro anos pesquisados. O estudo foi classificado como de caráter
experimental e divulgado no último dia 13 de julho.
O porcentual de estudantes que
experimentaram bebida alcoólica subiu de 52,9% para 63,2%, entre 2012 e 2019. O
aumento foi mais expressivo entre as meninas: de 55% para 67,4% (entre rapazes,
o indicador cresceu de 50,4% para 58,8%). Houve expansão também da parcela de
alunos que contaram ter feito uso de drogas ilícitas: de 8,2% para 12,1%, no
período de 2009 a 2019.
Em sentido oposto, o porcentual de
estudantes que usaram preservativo na última relação sexual caiu de 72,5% para
59%, também de 2009 a 2019. Entre os meninos, esse índice recuou para 62,8% e,
entre as meninas, para 53,5%. Ou seja, quase metade das alunas que já haviam
iniciado a vida sexual informou ter praticado sexo desprotegido na última
relação.
Como se sabe, quem consome bebidas alcoólicas
ou drogas ilícitas, independentemente da idade, fica mais propenso a adotar
comportamentos de risco. Eis uma combinação perigosa no que diz respeito ao uso
de preservativos: pesquisas já demonstraram que pessoas alcoolizadas ou sob o
efeito de entorpecentes estão mais sujeitas a fazer sexo desprotegido. Tal
comportamento abre caminho para doenças sexualmente transmissíveis (DST) e para
a gravidez na adolescência, um dos principais fatores de evasão escolar entre
meninas.
A série histórica mostra ainda que cresceu
a insatisfação dos adolescentes com o próprio corpo: o porcentual dos que se
achavam gordos ou muitos gordos subiu de 17,5% para 23,2%; e o dos que se
julgavam magros ou muito magros passou de 21,9% para 28,6%. Ora, a adolescência
é um período de profundas transformações − e inquietações. Nos últimos anos, a
crescente exposição em redes sociais já foi apontada como possível fonte de
angústia para uma parcela da juventude, assim como para muita gente em outras
faixas etárias.
No tocante aos estudantes do 9.º ano do
ensino fundamental, as escolas têm enorme contribuição a dar. Seu papel, vale
dizer, não deve ficar restrito à mera disseminação de informações. Afinal,
temas como o consumo de bebidas alcoólicas e de drogas ilícitas, assim como o uso
de preservativos, envolvem questões comportamentais que vão muito além de saber
o que é “certo” ou “errado”. Nesse sentido, cabe às escolas não apenas debater
tais assuntos, mas criar espaços de escuta, acolhimento e orientação dos alunos
– tarefa essa que requer o apoio de psicólogos e profissionais da saúde.
A infinidade de tabelas e dados reunidos
pelo IBGE extrapola os limites desta página. É material sobre o qual gestores e
pesquisadores devem se debruçar para traçar políticas públicas que reduzam vulnerabilidades
e promovam o pleno desenvolvimento de toda a juventude brasileira, não apenas
nas capitais. Como se sabe, a pandemia de covid-19 agravou antigos problemas e
acrescentou novos. Levar em conta os resultados da PeNSE é um bom ponto de
partida.
Passando inflação para o próximo ano
O Estado de S. Paulo
Improvisos podem conter preços em 2022, mas acabarão legando desarranjos fiscais e pressões inflacionárias para 2023
Em vez de combater a inflação, o presidente
Jair Bolsonaro prepara um legado inflacionário para o próximo governo.
Concentrado na caça de votos, o presidente escolheu como prioridade, em sua
campanha, conter a alta de preços dos combustíveis e dar algum alívio – sem
dúvida necessário – a trabalhadores negligenciados na maior parte de seu
mandato. Socorridos somente na pior fase da pandemia, esses brasileiros foram
abandonados em 2021, sujeitos ao desemprego ou ao subemprego, enquanto o custo
de vida aumentava e os juros em alta sufocavam os endividados. Já empobrecidas,
essas pessoas continuarão a pagar em 2023 pelos desmandos fiscais e improvisos
da política eleitoreira.
Cortar impostos, distribuir subsídios e
aumentar o Auxílio Brasil podem atenuar por algum tempo a pressão
inflacionária, mas essas medidas serão limitadas em dois sentidos. Em primeiro
lugar, seu efeito será temporário. Em segundo, nenhuma delas eliminará as
causas da inflação. Mas, além de limitadas em seu alcance, essas medidas
poderão criar insegurança no mercado, afetar o câmbio, encarecer a dívida
oficial e complicar perigosamente a gestão das contas públicas. Todas essas
consequências, a começar pela instabilidade cambial, tenderão a realimentar a
alta de preços.
As ações de curto prazo poderão derrubar os
índices de inflação, por algum tempo, e esse efeito provável já é levado em
conta no mercado. Em quatro semanas o aumento de preços ao consumidor estimado
para 2022 passou de 8,27% para 7,54%. Mas a curva do próximo ano mudou no
sentido contrário. Pela última projeção, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA) subirá 5,20% em 2023. Quatro semanas antes, os cálculos apontavam 4,83%,
segundo a pesquisa Focus, publicada pelo Banco Central.
A expectativa de inflação ainda alta no
próximo ano, quando os efeitos da improvisação estiverem esgotados, afeta as
projeções da Selic, a taxa básica de juros. A Selic prevista para o fim de 2022
ficou em 13,75% nas últimas quatro semanas, mas vários analistas já insistem na
hipótese de uma taxa de 14%. Para 2023 a projeção do boletim Focus passou
de 10,25% para 10,75% em um mês.
As bondades fiscais poderão facilitar um
crescimento econômico de 1,75% neste ano, segundo a última avaliação do
mercado. As estimativas para 2022 têm crescido, mas o desempenho calculado para
o Brasil continua bem inferior àqueles projetados para a maior parte dos
emergentes. Além disso, os estímulos improvisados para o ano, e ainda incertos,
devem produzir efeitos passageiros. Segundo as projeções para 2023, o Produto
Interno Bruto (PIB) crescerá 0,50%. As previsões do mercado indicam 1,80% para
2024 e 2% para 2025, taxas compatíveis, segundo se supõe, com o potencial de
crescimento.
Se nenhuma grande surpresa ocorrer, o
presidente Bolsonaro concluirá seu período com o País estagnado e despreparado
para crescer, contas públicas em condições precárias, pressões inflacionárias e
muito desemprego. Na falta de outro, pelo menos o fim de seu mandato será um
fato animador.
Armas não policiadas
Folha de S. Paulo
Insegurança legal e postura judicial
leniente levam a descontrole na proliferação de armamentos
A política
armamentista do governo Jair Bolsonaro (PL) não é novidade
alguma. O que a sustenta na prática, no entanto, é um emaranhado de regras
jurídicas e decisões judiciais que estão pouco submetidas ao escrutínio
público. A confusão legal busca abrir brechas para grupos pró-armas, ao arrepio
do Estatuto do Desarmamento.
"Parabéns ao atirador. Parabéns ao
juiz. Parabéns à população por se armar." Estas são algumas das palavras de
ordem nas redes sociais em celebração da decisão do juiz
estadual Orlando Haddad Neto, que anulou no fim do mês passado a prisão em
flagrante, por porte ilegal de arma, de um comerciante em Jundiaí (SP) que
matou um suspeito em tentativa de assalto.
Por trás da decisão judicial a respeito do
comerciante registrado como CAC (colecionador,
atirador desportivo e caçador) há um imbróglio legal e uma
disputa institucional. Legalmente, uma série de decretos de Bolsonaro ofusca o
que integra ou não o trajeto entre a casa e o local de tiro.
Sem a limitação espacial, os CACs ganhariam
na prática o direito de andar armados. Foi o que o juiz decidiu em Jundiaí, de
encontro à lei do desarmamento que proíbe cidadãos comuns de portarem armas.
De outro lado, há implicitamente uma
contenda institucional em jogo. Setores policiais e judiciais disputam entre si
qual seria a correta interpretação legal.
O delegado no caso de Jundiaí compreendeu
que houve crime por parte do atirador esportivo ao andar com uma pistola sem
estar a caminho de um estande de tiro; o juiz discordou. Subjacente a estas
disputas, está a questão se CACs compõem classe especial que pode violar a lei
de desarmamento. Não deveriam ser.
Recentemente, o Exército
chegou a admitir ser incapaz sequer de detalhar os tipos de
armas nas mãos dos CACs. Mais armas em circulação também dificultam a
fiscalização por parte da Polícia Federal, bem como criam condições para que caiam
nas mãos de criminosos, tornando o trabalho de segurança pública ainda mais
árduo.
Com o tema das armas parado na pauta do Supremo e o crescente número de projetos inconstitucionais no âmbito estadual que beneficiam os CACs, corre-se o risco de o país deixar à mercê de autoridades policiais e judiciais a discricionariedade de decidir quem pode ou não andar armado. Pela lei, nenhum cidadão comum deveria.
Crise no Sri Lanka revela o risco da aposta
na agricultura orgânica
O Globo
Produção de comida desabou porque
presidente baniu os fertilizantes — inflamando revolta que o derrubou
A atual crise no Sri Lanka traz uma lição
que transcende suas fronteiras. É uma espécie de teste de laboratório sobre os
limites da ideia de uma transição para a agricultura orgânica, proposta que
muitos gostam de defender com ardor em todos os cantos do mundo, também no
Brasil. A ilha pouco maior que a Paraíba, situada ao sul da Índia, ganhou
destaque na semana passada depois que o presidente Gotabaya Rajapaksa, oriundo
de uma poderosa dinastia política, fugiu do país com medo de protestos furiosos
e renunciou ao cargo por e-mail.
Entre as causas da crise que se arrasta há
meses estão o colapso da indústria do turismo durante a pandemia e a alta dos
preços das commodities depois da invasão da Ucrânia pela Rússia. O primeiro
dilapidou as reservas de moedas fortes do país. A segunda fez explodir a
inflação. Nesse sentido, o Sri Lanka não é um caso muito distinto de vários
outros países, não apenas na Ásia.
O que torna sua crise sui generis — e bem
mais relevante para o debate sobre o futuro da agricultura no mundo — é um
problema anterior à pandemia e à guerra. Rajapaksa foi eleito em 2019 com uma
plataforma que incluía a promessa de revolucionar a produção agrícola. Em abril
do ano passado, ele simplesmente baniu a importação de fertilizantes químicos,
usados por 90% dos agricultores locais. No papel, parecia uma ideia astuta para
diferenciar os produtos do país no mercado internacional. Parte dos
consumidores de alta renda tende a pagar mais por alimentos produzidos sem
agrotóxicos. Na realidade, foi um tremendo desastre.
Sem fertilizantes, a agricultura perdeu
produtividade, e a produção de arroz despencou. Fechou o período de 2021 e 2022
abaixo de 3 milhões de toneladas, inferior aos 3,4 milhões da safra anterior.
Os pequenos agricultores foram os mais penalizados. De exportador do produto, o
Sri Lanka se viu forçado a importar arroz. Na produção de chá, mercadoria
importante de que o Sri Lanka é o quarto maior produtor mundial, a queda foi de
25% só nos seis meses após o anúncio da medida. As culturas de milho e coco
também sofreram redução de produtividade.
A demanda pela produção sem agrotóxicos,
sobretudo das classes mais abastadas dos países ricos, não deverá amainar. Mas
é evidente que a produtividade menor da agricultura orgânica a torna no máximo
um produto de nicho, incapaz de sustentar a competitividade num mercado
disputadíssimo, muito menos de aliviar a fome ou atender à demanda crescente
por alimentos, como propalam seus defensores. O experimento do pequenino Sri
Lanka expõe o custo econômico e social do fervor ideológico. Ficou evidente que
promessas fantasiosas não se sustentam nos fatos.
Mesmo com os preços dos alimentos subindo,
os agricultores não conseguiram aumentar a produção. Para muitos, o alto risco
de quebra de safra era um motivo suficiente para inibir o investimento.
Recentemente, o governo anunciou que voltaria a subsidiar os fertilizantes
químicos. Eis a lição do experimento cingalês.
Brasil terá que conviver com juros mais
altos
Valor Econômico
A julgar pela rapidez em que são destruídas
as instituições fiscais, os juros serão maiores e o crescimento, bem menor
A incerteza criada pelas medidas do governo
para cortar impostos e ampliar os gastos durante as eleições deverá fazer o
Brasil conviver com um nível de juros mais alto por muito tempo, prejudicando
tanto o setor público quanto o setor privado.
Em relatório publicado na semana passada, a
Instituição Fiscal Independente (IFI) calcula que, tudo somado, chega a R$ 166
bilhões o impacto das iniciativas para burlar os limites fiscais neste ano,
desde a manobra para tirar do teto de gastos o pagamento de precatórios até o
recente aumento de transferências de renda para a população e setores
organizados.
A IFI liga os pontos e diz que,
provavelmente, esse desarranjo fiscal “implicará taxas de juros de equilíbrio
mais elevadas”, referindo se ao nível de juros que coloca a economia em pleno
emprego, sem pressionar a inflação. O relatório nota que o Banco Central,
recentemente, elevou a sua taxa neutra de 3,5% para 4% ao ano. “O deslocamento
da taxa real de juros para um nível mais elevado configuraria uma mudança para
um equilíbrio pior, com efeitos sobre as condições de financiamento dos setores
público e privado”, registra a IFI.
De fato, o governo já está pagando, há
algum tempo, uma taxa de juros mais alta para rolar a dívida pública. Em maio,
o custo médio de novas emissões de títulos pelo Tesouro chegou a 11,69%, uma
alta de 6,2 pontos percentuais em um período de 12 meses. Uma parte dessa alta
nos custos é temporária, pois o Banco Central foi obrigado a colocar a meta da
taxa Selic em um nível superior à taxa neutra para combater o forte surto
inflacionário.
O fato de ser temporário, porém, não exime
o próprio governo de culpa. A pandemia e a invasão da Ucrânia aumentaram preços
de bens industriais e commodities, incluindo energia, metais e alimentos. Esse
choque deveria ter sido pelo menos parcialmente amenizado por uma valorização
cambial, já que o Brasil é exportador de produtos básicos. Mas o risco fiscal
atua como um vetor de depreciação do real, ao lado do aperto monetário em
economias desenvolvidas.
Os pacotes fiscais também estão provocando
pressão sobre a demanda agregada, dificultando o trabalho desinflacionário do
Banco Central. Além dos R$ 166 bilhões destacados pela IFI, o governo também
injetou mais recursos na economia em medidas como a antecipação do pagamento do
13º salário a aposentados e pensionistas e liberação de recursos do FGTS, além
da expansão do crédito direcionado.
No curto prazo, a política fiscal do
governo obriga, portanto, o Banco Central a operar com uma taxa básica de juros
mais alta. Assim, o setor privado paga mais caro nas suas captações e tem menos
recursos disponíveis nos mercados de capitais, inviabilizando projetos de
investimento.
O que preocupa, porém, são as consequências
mais duradouras da política fiscal na taxa de juros de equilíbrio. Desde a
adoção do regime de metas de inflação, em 1999, ela vinha caindo, partindo de
um patamar de dois dígitos, em termos reais. Antes da pandemia, caminhava para
abaixo de 3%.
Em boa medida, o Brasil tomou carona numa
tendência global de queda nos juros de equilíbrio, dentro das forças da chamada
estagnação secular. Fatores como o envelhecimento da população, queda da
produtividade e menor demanda por capital na economia de alta tecnologia
mudaram o equilíbrio entre poupança e empréstimos.
Mas houve méritos de nossa política
econômica, com reformas que reduziram os prêmios de risco, como a trabalhista e
previdenciária. Ultimamente, porém, houve retrocessos. Os analistas econômicos
do setor privado culparam a política fiscal pela alta recente da taxa neutra,
numa pesquisa feita pelo Banco Central.
Quanto mais alta a taxa neutra, maior o
esforço fiscal que o governo é obrigado a fazer, durante anos, para estabilizar
a dívida pública. O modelo econômico usado pela IFI mostra que, hoje, seria
necessário um superávit primário de 1,4% do PIB para estabilizar a dívida bruta
nos 79,6% do PIB previstos para o fim deste ano.
Mas as estimativas da IFI parecem conservadoras. Elas consideram um juro real de longo prazo de 3,88% ao ano, e que a economia entre numa trajetória de crescimento sustentado de 2% no longo prazo. A julgar pela rapidez em que são destruídas as instituições fiscais, os juros devem ser maiores, e o crescimento da economia, bem menor.
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