Editoriais / Opiniões
Riscos da letargia
Folha de S. Paulo
Memória da tragédia da Covid faz temer a
inação do governo diante da varíola dos macacos
O mundo está às voltas com uma nova ameaça,
a varíola dos
macacos. Nada que se compare com a Covid-19,
decerto, porém o retrospecto desastroso do Brasil no enfrentamento do coronavírus suscita
certa preocupação.
A doença, similar àquela erradicada na
década de 1970 com vacinação em massa, não chamava tanta atenção enquanto foi
endêmica na África. O vírus conhecido pelo nome em inglês da moléstia,
monkeypox, ganhou manchetes ao se espalhar em países ricos, ainda que de
maneira lenta e limitada.
Foram registrados até agora cerca de 17 mil
casos globalmente. O país mais afetado, Espanha, ultrapassa 3.000 infecções,
seguido pelos EUA e por outras três nações europeias, Alemanha, Reino Unido e
França.
O Brasil figura em sexto lugar, com mais de 1.000 diagnósticos, 70% deles no estado de São Paulo. Entre o primeiro caso confirmado e essa cifra transcorreram apenas seis semanas, permitindo supor que a transmissão já seja comunitária e provavelmente haja subnotificação. A primeira morte foi anunciada nesta sexta (29).
Rosamund Lewis, responsável da Organização
Mundial da Saúde, qualificou a situação brasileira como preocupante.
No último dia 23, a OMS afirmou que a varíola dos macacos constitui uma
"emergência pública de preocupação global", embora sem o potencial do
coronavírus para desencadear uma pandemia.
Não há, por ora, motivo para alarme. A
enfermidade difere muito da Covid, que ainda grassa e poderia influenciar a
percepção social.
A transmissão se dá de modo preponderante
por via sexual. A maioria dos casos até aqui ocorreu entre homens que fazem
sexo com homens. Eles são em geral mais atentos a lesões de pele por sua
experiência com o HIV e mais propensos a buscar cuidados médicos, o que
facilita o rastreamento.
A letalidade alcança no máximo 6% dos
infectados, contra 30% da extinta varíola. Há duas vacinas razoavelmente
eficazes e dois antirretrovirais para tratamento.
Por outro lado, as lesões podem
ser sutis e confundir o diagnóstico, dificultando o isolamento
de portadores. As vacinas são poucas e disputadas, e os medicamentos não estão
disponíveis no Brasil. Nada garante que a transmissão siga confinada ao grupo
mais atingido até aqui. Já se registraram dezenas de crianças afetadas.
Na sombra da incúria do governo de Jair
Bolsonaro diante da Covid, preocupa a reação algo letárgica de Brasília. Sem
coordenação empenhada e eficaz do Ministério da Saúde, a ampliação da
capacidade de testagem e o acesso a
vacinas e antirretrovirais poderão não chegar de forma
tempestiva. Já vimos esse filme, e ele termina mal.
Perseguição na Funai
Folha de S. Paulo
Ações contra agentes federais apontam
tentativa de enfraquecer órgão de proteção aos indígenas
Não é de hoje que o governo Jair
Bolsonaro faz tudo para esvaziar a Funai
(Fundação Nacional do Índio), o órgão responsável pela proteção dos
direitos assegurados pela Constituição aos povos indígenas.
Apenas 4 de cada 10 cargos da instituição
estão preenchidos, e posições
chave estão desocupadas. Muitas funções passaram a ser exercidas por
policiais e membros das Forças Armadas, em detrimento dos servidores da área.
Uma denúncia apresentada pelo Ministério
Público Federal à Justiça Federal do Amazonas na semana passada mostra que a
investida adquiriu também ares policialescos.
Os procuradores acusam o atual presidente
da fundação, Marcelo
Augusto Xavier da Silva, de produzir um relatório de inteligência
clandestino com o intuito de perseguir
servidores do órgão e associações indígenas, tendo acionado a
Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) contra eles.
Tudo indica que a intenção era constranger
os agentes, que Xavier acusa de obstruir o processo de licenciamento ambiental
do Linhão de
Tucuruí, linha de transmissão de energia projetada para ser
construída entre Manaus (AM) e Boa Vista (RR), cujo traçado passa pela terra
indígena Waimiri-Atroari.
Xavier, que é delegado da PF, pediu também
que os investigadores examinassem a conduta de um procurador federal que
trabalha na Funai e assinou parecer jurídico a favor dos
indígenas. Ele acusa os servidores da prática dos crimes de tráfico
de influência e prevaricação no processo de licenciamento ambiental.
O Ministério Público promoveu o
arquivamento do inquérito aberto a pedido de Xavier e agora o acusa de
denunciação caluniosa. O presidente da Funai também representou à
Procuradoria-Geral da República contra o procurador que encerrou a
investigação, sem sucesso.
Para o Ministério Público, não há nenhuma
irregularidade na conduta dos funcionários que se tornaram alvo de Xavier, e
eles estavam apenas fazendo seu trabalho. Caberá agora à Justiça examinar o
caso com a atenção que requer e impedir que as tentativas de intimidação
prossigam.
Ao pôr em marcha a máquina estatal com o
fim de pressionar os agentes da Funai a se afastar do exercício da sua missão
institucional, a liderança da fundação assumiu postura digna de governos
totalitários e mostrou o tamanho do seu descaso com as populações que o órgão deveria
proteger.
Governo estimula os pobres a se endividar
O Estado de S. Paulo
Ao autorizar empréstimo consignado para beneficiários do Auxílio Brasil, governo distorce conceitos de políticas sociais orientadas pela redução da desigualdade e combate à pobreza
O governo Jair Bolsonaro está prestes a
criar uma bolha de crédito sem precedentes na história brasileira. Incapaz de
garantir condições dignas de sobrevivência para famílias carentes, o Executivo
optou por destruir as bases do Bolsa Família, retirar suas contrapartidas e
substituí-lo pelo eleitoreiro Auxílio Brasil. Definiu que o piso do programa
seria de R$ 400 sem qualquer estudo técnico, independentemente do tamanho das
famílias e da idade dos filhos, e, apavorado pela estagnação de Bolsonaro nas
pesquisas, decidiu elevá-lo a R$ 600 seis meses depois. Agora, a título de
facilitar o acesso ao crédito em um país de endividados, o governo achou por
bem autorizar o contingente de atendidos pelo Auxílio Brasil a tomar
empréstimos consignados, modalidade de financiamento em que a parcela é
descontada do pagamento de forma automática.
Essa temeridade era parte de uma medida
provisória enviada ao Congresso em março e que já recebeu o aval da Câmara e do
Senado. Pelo texto aprovado, os beneficiários poderão comprometer 40% do valor
que recebem em operações com prazo de até dois anos. A proposta ainda precisa
ser regulamentada, mas já há instituições prontas para atender este público com
escorchantes taxas de 4,98% ao mês e de 85,99% ao ano, como relatou a jornalista
Adriana Fernandes em sua coluna no Estadão. O Executivo poderia ter
tentado resguardar os mais vulneráveis ao impor um teto aos juros dessas
operações. Se estivesse preocupado em reduzir as taxas cobradas na ponta,
poderia ter colocado a União como garantidora em caso de inadimplência. Como
não fez nada disso, o céu será o limite e cada um que se proteja da forma como
puder.
Não há por que esperar uma atuação social
consistente de um governo que pensa dia e noite na reeleição, mas dessa vez a
temeridade atingiu o ápice. Dados mais recentes da Serasa Experian apontam que
66,6 milhões de pessoas estavam com o nome sujo em maio, o maior número de
devedores de toda a série da pesquisa. Com a disparada da inflação e os juros
em alta, milhões de brasileiros lutam pela sobrevivência diária em trabalhos
informais que pagam baixos salários. Muitos escolhem quais contas deixarão de
ser pagas a cada mês; outros procuram financiamentos para quitá-las. Há também
quem busque alavancagem com novos empréstimos para pagar financiamentos mais
antigos – ou seja, rolar dívidas. Quase metade da população está um pouco ou
muito preocupada com sua situação financeira, e 6 em cada 10 brasileiros acham
que não conseguirão pagar suas contas nos próximos seis meses, segundo pesquisa
realizada pela Ipsos e publicada pelo Valor.
A dureza do cenário econômico já permitia
vislumbrar um aumento da inadimplência nos próximos meses, mas a entrada de 20
milhões de famílias do Auxílio Brasil no mercado de crédito faz desta previsão
uma certeza. Ao menos em tese, o aumento do piso do Auxílio Brasil é temporário
e volta a ser de R$ 400 em janeiro. Não há, no Orçamento de 2023, recursos
reservados para mantê-lo em R$ 600, a despeito das promessas de campanha feitas
por Bolsonaro e pelo petista Lula da Silva. Para levantar um montante de R$
2.500, o beneficiário terá que pagar R$ 160 mensais e receberá R$ 440 até
dezembro; quando o valor pago pelo governo voltar a ser de R$ 400, a parcela
que efetivamente chegará ao seu bolso será cortada para R$ 240, praticamente o
mesmo que era pago em média pelo Bolsa Família em 2021. Ao fim dessa operação,
terá pago quase o dobro do que tomou inicialmente e provavelmente estará
devendo a agiotas que cobrarão juros ainda mais exorbitantes em operações
paralelas.
Não satisfeito em distorcer todos os
conceitos de políticas sociais orientadas pela redução da desigualdade e pelo
combate à pobreza, o que o governo faz agora é lançar milhões de famílias
vulneráveis e desprovidas de qualquer noção de educação financeira ao
precipício. As consequências de mais uma decisão marcada pelo improviso e pelo
desespero eleitoral são mais do que previsíveis.
Enfim, algo se moveu no MEC
O Estado de S. Paulo
Fato raro no arruinado Ministério da Educação, anúncio de que Carlos Moreno, técnico respeitado, vai presidir o instituto responsável pela organização do Enem é uma decisão sensata
A poucos meses das eleições e do Exame
Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano, um fato inusitado ocorreu no
Ministério da Educação (MEC). Em uma decisão sensata, algo raro nos últimos
três anos e meio, o MEC anunciou a nomeação de Carlos Eduardo Moreno Sampaio
para presidir, interinamente, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep) − autarquia responsável pelo Enem e pelas
demais avaliações nacionais, bem como por estatísticas do setor. Servidor de
carreira com mais de três décadas de casa, Carlos Moreno, como é conhecido, é
um respeitado técnico que desde 2010 estava à frente da Diretoria de
Estatísticas Educacionais do instituto.
A troca de comando foi anunciada na última
quarta-feira pelo ministro da Educação, Victor Godoy. Moreno substituirá Danilo
Dupas, um dirigente que vivia às turras com o corpo técnico do instituto e que
nunca havia trabalhado com avaliações antes de virar presidente do órgão, em
fevereiro de 2021. Conforme Godoy postou em redes sociais, Dupas sai “por
motivos pessoais e a pedido”. O Estadão apurou, contudo, que a
verdadeira razão para Dupas deixar o cargo foi um pedido do Palácio do
Planalto, temeroso de que eventuais falhas na preparação do Enem ou mesmo que
os constantes atritos do dirigente com servidores do instituto prejudicassem a
campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro.
Seja qual for o motivo, o resultado é ótimo
para a educação. A longa carreira de Moreno como servidor do Inep, onde se
destacou a ponto de ser condecorado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e
de receber prêmio do movimento Todos pela Educação, joga luz sobre a
qualificação de boa parte do corpo técnico na administração federal. Gente que
domina sua área de atuação e conhece a máquina pública. Ou seja, que está
disponível para contribuir para o desenvolvimento do País, mas acaba preterida
por correligionários e apadrinhados. Por óbvio, isso não é exclusividade do
atual governo. Sob Bolsonaro, porém, chama a atenção que servidores
qualificados deem lugar a dirigentes despreparados ou sem experiência.
Vitrine dos desastres que o bolsonarismo é
capaz de produzir, o MEC já deu origem a todo tipo de má notícia e mau exemplo
nos últimos três anos e meio. Devaneios ideológicos, incompetência e a sombra
da corrupção foram a face mais visível de um problema estrutural: falta, ao
governo Bolsonaro, um projeto para que o ensino e a aprendizagem avancem no
País − exceto se, por projeto, entendermos a atuação deliberada de muitos de
seus dirigentes para fazer retroceder e implodir o que governos anteriores, com
a participação da sociedade, lograram pôr de pé.
Exemplo dessa lógica de desmonte, o Inep
foi entregue a gente sem experiência ou mesmo que não era da área. Moreno
deverá assumir o cargo em 1.º de agosto, como o quinto presidente do órgão em
menos de quatro anos. Vale lembrar que o ministro Godoy também é o quinto
nomeado para dirigir o MEC sob Bolsonaro − o terceiro, Carlos Alberto
Decotelli, nem chegou a tomar posse, enquanto o quarto, o pastor Milton
Ribeiro, chegou a ser preso pela Polícia Federal, já após deixar o cargo, na
investigação do chamado “gabinete paralelo” − escândalo revelado pelo Estadão em
que pastores foram acusados de intermediar repasses de verbas a prefeituras.
Na guerra ideológica promovida pelo
bolsonarismo, o teor das questões do Enem virou um dos alvos prediletos, a
ponto de que temas como sexualidade e ditadura militar fossem evitados. Sem
falar na supressão de itens considerados sensíveis na edição de 2021, como
revelou o Estadão à época − Dupas foi acusado de interferência e
dezenas de servidores pediram exoneração. Bolsonaro chegou a declarar, então,
que as questões do Enem começavam “a ter a cara do governo”.
No momento em que o presidente busca a
reeleição e vai mal nas pesquisas, o governo promove a troca de comando no
Inep. E o novo dirigente não vem da grei ideológica. Pelo contrário, é um
técnico que entende de avaliação e educação. Por linhas tortas, ganha a
educação brasileira.
Desemprego menor, muita informalidade
O Estado de S. Paulo
Desocupação recua no 2.º trimestre, mas informalidade é recorde e o rendimento médio foi menor que o de um ano antes
Com 10,1 milhões de desempregados e 24,7
milhões de trabalhadores subutilizados, os brasileiros podem, apesar de tudo,
registrar notícias positivas sobre o mercado de trabalho. O desemprego caiu de
11,1% no primeiro trimestre para 9,3% no segundo, a menor taxa para o período
abril-junho desde 2015, quando ficou em 8,4%. O aumento da ocupação reflete
principalmente a recuperação da atividade econômica, ainda modesta e liderada
pelo setor de serviços, importante fonte de empregos informais e de baixa
remuneração. Mas também reflete o aumento do trabalho por conta própria,
frequentemente informal e adotado, em muitos casos, como única forma de escapar
da fome. Os números são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O número de trabalhadores por conta própria,
de 25,7 milhões, foi o maior de um trimestre encerrado em junho desde o início
da série, em 2012, superando por 1,7% o dos três meses anteriores e por 4,3% o
de igual período de 2021.
O rendimento habitual dos ocupados, de R$
2.652, ficou estável em relação aos três meses anteriores e foi 5,1% inferior,
descontada a inflação, ao de um ano antes. A massa de rendimentos habituais, de
R$ 255,7 bilhões, cresceu 4,4% em um trimestre e 4,8% em um ano.
Mesmo com esse avanço, o volume das vendas
no varejo entre janeiro e maio foi apenas 1,8% maior que o dos primeiros cinco
meses do ano passado. As famílias foram provavelmente forçadas a recompor suas
despesas, concentrando-as em alguns bens e serviços essenciais, como comida,
transporte, eletricidade e gás, por causa do grande aumento de preços desses
itens.
Apesar da melhora recente do emprego, o
quadro geral torna-se bem menos luminoso quando confrontado com dados
internacionais. O desemprego médio ficou estabilizado em 5%, em abril e maio,
em 38 países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Em apenas cinco desses países a desocupação superava a brasileira. Em 14, era
inferior a 4%. Esse grupo incluía os Estados Unidos, com 3,6% de desocupados, e
Alemanha, com 2,8%.
A taxa de informalidade, isto é, de
ocupação sem registro oficial, ficou praticamente constante. Passou de 40,1% da
população ocupada para 40% entre o primeiro trimestre e o segundo, reproduzindo
a de abril-junho de 2021. O número de trabalhadores informais atingiu 39,3 milhões,
o maior da série desse indicador, iniciada em 2016.
No setor privado, os empregados sem
carteira assinada, 13 milhões, o maior contingente da série histórica,
aumentaram 6,8% de um trimestre para outro e superaram por 23% o total do
período correspondente no ano anterior. Empregados informais têm normalmente
menor segurança e menos benefícios vinculados à relação de trabalho.
Com juros muito altos, muita insegurança
entre investidores e crescimento econômico estimado na faixa de 1,5% a 2%, as
condições de emprego dificilmente apresentarão melhoras duradouras antes da
instalação de um novo governo.
Economia impõe desafio redobrado a novo
governo
O Globo
Há sinais de melhora na inflação, emprego e
crescimento, mas é preciso cuidado para não pôr tudo a perder
A dois meses da eleição, a economia
brasileira emite sinais consistentes de melhora. A prévia da inflação aponta
inversão na escalada de preços: em julho, o IPCA-15 ficou em 11,4%, abaixo dos
12% dos 12 meses anteriores. O desemprego também está em recuperação: no
trimestre encerrado em junho, fechou em 9,3%, índice mais baixo para o segundo
trimestre desde 2015. Finalmente, em sua projeção mais recente, o Fundo
Monetário Internacional (FMI) reviu a estimativa de crescimento brasileiro em
2022 de 0,8% para 1,7% (números oficiais preveem 2%).
Ao mesmo tempo, o Ministério da Economia
reavaliou sua projeção de déficit primário para R$ 59,4 bilhões (0,6% do PIB),
R$ 6,1 bilhões abaixo da estimativa anterior. Os otimistas falam na
possibilidade de superávit já em 2022, depois de oito anos de déficit. Tudo
isso significa que, se o governo Jair Bolsonaro não cometer mais desvarios, o
próximo presidente receberá as contas públicas em estado razoável. Mas a
situação é frágil, e será preciso cuidado redobrado para não estragá-la.
Há diversas causas para a situação fiscal
melhorar. A reforma da Previdência de 2019 reduziu o crescimento do déficit do
INSS, fonte crônica de pressão sobre o Tesouro. O teto de gastos, mesmo tendo
sido alvo de sucessivas sabotagens na gestão Bolsonaro, tem contribuído para
conter o crescimento das despesas. A reforma trabalhista do governo Michel
Temer ajuda a evitar um desemprego maior e traz receitas (o empregado com
carteira assinada recolhe contribuições ao INSS). E a inflação tem o efeito
ilusório — e passageiro —de alta na arrecadação.
Vários riscos ainda pairam sobre o
equilíbrio fiscal futuro. O mais evidente é a intenção declarada do atual líder
nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de revogar o teto de
gastos, sem dizer o que porá no lugar. Embora a despesa do governo esteja sob
controle, abaixo de 19% do PIB, ainda é necessário um ajuste fiscal maior para
evitar a explosão na dívida pública. Revogar o teto para distribuir aumentos ao
funcionalismo (fetiche ideológico da esquerda) significará deterioração
imediata no quadro positivo.
Além disso, o governo pediu nesta semana às
maiores estatais — Petrobras, Banco do Brasil, Caixa e BNDES — que antecipem o
pagamento de dividendos à União, sob o argumento de deixar as contas no azul. O
estado das finanças públicas mostra que essa antecipação, além de
desnecessária, prejudicará o início do próximo governo, que terá menos recursos
à disposição.
Por fim, a expectativa do FMI para a
economia global é negativa: de um crescimento de 6,1% em 2021, o PIB mundial
deverá desacelerar para 3,2% neste ano e, a depender das economias americana e
chinesa, o desaquecimento contaminará 2023 e afetará o Brasil sob o governo
eleito em outubro.
Em janeiro, o novo mandatário assumirá com
dificuldades conhecidas: manter o prumo nas contas públicas, atingidas pelos
arroubos eleitoreiros deste ano, e promover as reformas essenciais para tirar a
economia do longo ciclo de estagnação (tributária e administrativa). Será
desastroso se persistirem as incertezas sobre os gastos. É considerada
inevitável a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600. Haverá maior instabilidade
se o novo governo revogar o teto de gastos, der reajustes gerais ao
funcionalismo, conceder mais isenções de impostos e enveredar pela
irresponsabilidade fiscal.
Responsabilidade por crime ambiental ultrapassa
as fronteiras da Amazônia
O Globo
Garimpo e madeireiras ilegais vicejam sob
conexões políticas que chegam aos gabinetes de Brasília
O assassinato do indigenista e funcionário
da Funai Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips no Vale do
Javari, no Amazonas, revelou uma região sob controle do crime organizado no
garimpo, na exploração da madeira e na pesca. O crime, confessado por
pescadores ilegais, mobilizou as Forças Armadas e a Polícia Federal, mas por
enquanto não passou disso.
Presos os implicados nas mortes, o Vale do
Javari voltou a ser o que sempre foi: um entroncamento de rios em que
traficantes e outros criminosos se deslocam numa região estratégica, na
fronteira com a Colômbia e o Peru, países conhecidos como fornecedores mundiais
de cocaína. Sem um aparato de segurança eficaz para deter a criminalidade,
grupos armados voltam a ameaçar servidores que trabalham na região e a
população.
Um desses grupos, ligado a garimpeiros,
pressionou, de acordo com ofício revelado pela Folha de S.Paulo, funcionários
da Funai para saber quantos servidores trabalham no local, em atitude de clara
intimidação. No início do ano, a Funai localizara 19 balsas de garimpo próximas
de sua base no Rio Jandiatuba, a 30 quilômetros das terras onde há o maior
número de índios isolados no país. Foram encontrados 14 pontos de garimpo na
região, protegidos por seguranças armados, segundo a União dos Povos Indígenas
do Vale do Javari (Univaja). A Funai pediu ajuda às Forças Armadas, que não
deveriam ter se afastado da região. O recuo deu espaço ao retorno do crime.
A Amazônia repete um roteiro conhecido no
Rio, em que o tráfico de drogas prospera na ausência do Estado. O descaso do
governo com a preservação da floresta incentivou a proliferação de garimpos, a
ampliação das frentes existentes de desmatamento e o surgimento de novos pontos
de devastação. É dessa forma que vicejam os grupos paramilitares, formados para
dar segurança a desmatadores e garimpeiros.
Faz tempo que a destruição da Amazônia
deixou de ser responsabilidade de posseiros desinformados que retiram a
madeira, incendeiam a floresta e poluem os rios com mercúrio de garimpos. Em
recente operação da Polícia Federal contra o garimpo ilegal em Jutaí, no Alto
Solimões, um dos alvos foi o prefeito da cidade, Pedro Macário Barboza (PDT),
acusado de receber, com secretários, propina em ouro para acobertar a
prospecção do minério em zonas de preservação e terras indígenas. Macário e
seus auxiliares foram afastados dos cargos por 90 dias, e as autorizações para
garimpos na região foram cassadas.
Nada garante que tudo não volte a ser como antes. Ficou claro no governo Bolsonaro que o modelo de exploração predatória da Amazônia tem fortes conexões fora da região. A começar por Brasília.
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