sábado, 30 de julho de 2022

George Gurgel de Oliveira* - O Brasil dos Negos Fujidos: os desafios históricos continuam atuais

A nossa ida ao Acupe de Santo Amaro, neste mês de julho, vivenciar e estar com “os Negos Fugidos”, rememorando as lutas do passado colonial, a memória das populações negras e celebrando a vida, nos ajuda a entender o que fomos, o que somos e o que queremos ser como sociedade. 

Devemos aproveitar esta nossa reflexão sobre a comunidade do Acupe de Santo Amaro e a manifestação dos Negos Fujidos para entender melhor como a sociedade brasileira foi e continua sendo construída e os desafios de preservação da nossa memória histórica e cultural. 

Assim, saber mais dos Negos Fujidos é saber como se desenvolveu e se consolidou a escravidão brasileira, o processo de libertação da escravatura até a atualidade, na perspectiva de superarmos a difícil realidade que vive, ainda hoje, a população negra da Bahia e do Brasil.

Os Negos Fujidos

O Acupe de Santo Amaro, umbigo do recôncavo da Bahia, na sua particular resistência e luta pela libertação dos escravos, traz na sua história, e por tudo o que eu vi e assisti na celebração aos negos fujidos, uma contribuição afetiva e efetiva na perspectiva de inclusão da população negra como parte integrante da sociedade brasileira.

É de espantar o que presenciei nas ruas do Acupe: o Nego Fujido é uma grande encenação teatral. É festa, é resistência, é celebração da vida, inspirada nas lutas contra a escravidão, afirmando e reafirmando a contribuição da cultura negra à sociedade baiana e brasileira.

As ruas do Acupe são palcos de uma grandiosa encenação onde os principais personagens são o Rei, o Capitão do Mato, os Escravos e a Madrinha.

O Nego Fujido é o poder de resistência e de organização da comunidade, das antigas e novas gerações do Acupe que deram e continuam dando provas de como é possível preservar e continuar fazendo história, de maneira festiva e pedagógica, afirmando e reafirmando os valores culturais ancestrais que enriquecem a cultura baiana e brasileira.  

Ficamos impactados, sempre é bom lembrar, com o descompromisso, a falta de apoio da elite política governamental e empresarial da região, nos níveis municipal, estadual e federal, com tão importante manifestação cultural e cívica, secular, de matriz africana, parte integrante da nossa memória libertária, que tem, no recôncavo e na capital da Bahia, os fundamentos da nossa brasilidade e existência como nação.

Tudo foi e é feito neste mês de julho em Santo Amaro, apenas com a participação da Comunidade e de alguns abnegados, inclusive a sede, orgulhosamente inaugurada, recentemente, do Nego Fujido – que já funciona como centro cultural e educacional, construída e funcionando sem nenhum apoio do poder público. 

As lutas de libertação: os atores políticos, econômicos e sociais

A cultura do racismo nasce como uma maneira de exclusão dos povos africanos da vida e das conquistas da sociedade humana durante o século XV, deixando marcas profundas até à atualidade. Desde então, a escravidão passa a ser diretamente relacionada aos povos africanos, como uma maldição, a partir de uma visão cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias da América, na Europa e no próprio continente africano. O Brasil foi o país de maior concentração de escravos africanos do mundo. Chegou a uma população de 5 milhões de escravos ao longo de mais de 300 anos em que perdurou a escravidão negra no Brasil.

A escravidão africana, até meados do século XIX, era um dos principais esteios da vida econômica na América e na Europa. Fazia parte da estrutura das relações políticas, econômicas e sociais; base de acumulação de riqueza dos países europeus, inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial. 

A existência anterior da escravidão na história da humanidade, inclusive a escravidão de brancos e de indígenas, não traz relatos de sofrimentos e de perdas tão significativas e duradouras como a escravização dos povos africanos, realidade que nos agride como humanidade até os tempos atuais.

No Brasil, o abolicionismo consolidou-se como uma das formas mais representativas dos movimentos políticos do século XIX cujo objetivo era o fim do comércio de escravos africanos e a abolição da escravatura.

As leis abolicionistas promoveram a emancipação dos escravos de maneira gradual. A primeira foi a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Posteriormente, a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Finalmente, a lei assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, que abolia a escravidão no Brasil. As principais lideranças negras abolicionistas foram André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Ainda devem ser destacadas as lideranças femininas de Maria Tomásia, Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre outras lideranças abolicionistas brasileiras.

Em uma outra perspectiva acontece, desde o início da escravidão no Brasil, a luta dos quilombolas. Os quilombos eram organizados como espaços de resistência, de libertação. O de Palmares é o mais conhecido e aclamado com a liderança de Zumbi, cuja data de sua morte, 20 de novembro, passou a ser o dia nacional de resistência e de luta pelos direitos da população negra no Brasil, desde 2011.

A abolição da escravatura no Brasil em 13 de maio de 1888, assinada pela princesa Isabel, foi fruto de todas essas lutas, das mudanças que já vinham acontecendo na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações políticas, econômicas e sociais que já aconteciam na Europa, na própria América, a exemplo do movimento de libertação dos escravos no Haiti que foi fundamental na proclamação da República naquele pais. Essa abolição atendia também aos interesses da Inglaterra, em plena industrialização, que necessitava de mercado e matéria prima fora da Europa para consolidar a sua hegemonia no cenário internacional.

Nesse contexto, a abolição da escravatura no Brasil atendeu aos interesses das oligarquias nacionais que já não podiam manter o custo da mão de obra escrava e, ainda em função da realidade internacional, onde o Brasil já representava, em função de suas riquezas naturais, particularmente minerais, produção/potencialidades agrícola e pecuária, um espaço de acumulação e de mercado da economia capitalista mundial.  

Portanto, a libertação da população negra foi resultado das lutas de resistência dos movimentos de libertação desde quando os escravos(as) chegaram ao Brasil, dos movimentos Quilombolas e dos Abolicionistas, de resistências e de conquistas no processo de emancipação da população negra como parte integrante das lutas de transformação da sociedade brasileira, com seus conflitos e contradições históricos e atuais.

Os Negos continuam Fujidos

No Brasil atual, os Negos continuam fugidos. Os desafios históricos de inclusão da população negra na sociedade brasileira continuam atuais.

A abolição da escravatura no século XIX não incorporou a população negra à nova realidade política, econômica e social capitalista. Sem a terra e a escolaridade necessárias, os(as) negros(as) libertos(as) continuam fujidos na sua maioria, ficando à margem da sociedade brasileira, apesar das conquistas e dos avanços da população negra no Brasil, consolidadas na Constituição de 1988 e os seus desdobramentos político-institucionais, em função da luta e da resistência da população negra e do avanço da democracia brasileira.

Atualmente quais são os compromissos dos que governam, da sociedade e da cidadania em geral frente a esta realidade da população negra brasileira?

O que pensam hoje o Movimento Negro e os outros movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais e multiculturais frente às mudanças em curso na sociedade brasileira e mundial, onde a educação, a ciência, a tecnologia, a luta pela paz e seus reflexos no mundo do trabalho e da cultura impactam a vida de cada um de nós e de toda a sociedade?

No Brasil, ainda em pandemia, particularmente os(as) trabalhadores(as) de menor renda e a população desempregada em geral, na sua maioria   negra, continuam enfrentando sérias dificuldades econômicas e sociais, entre as quais a falta de uma renda emergencial permanente que lhes assegurem o mínimo de dignidade para atravessar a crise agravada com a contaminação e a morte de milhões de pessoas pela Covid-19,  dão a dimensão da tragédia  que atinge principalmente a população de baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho, as populações indígena e negra historicamente excluídas  no Brasil.

A inclusão da população negra, 54% da população brasileira segundo o IBGE, deve ser realizada a partir de pautas afirmativas e de reparação com o olhar do presente no caminho de um futuro que unifique a sociedade construindo uma agenda nacional para a saída da crise no caminho da consolidação e ampliação da democracia em nosso país. A população negra e suas representações no Brasil devem estar em diálogo permanente com a opinião pública e a sociedade em geral fortalecendo suas redes sociais e de comunicação, defendendo a melhoria das condições de vida da população negra, ampliando sua participação nas organizações do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil, apostando em uma agenda nacional reformista que retire o Brasil dessa grave crise política, econômica, social, ambiental e de valores que estamos vivendo.

Nesta perspectiva, a população negra e a sociedade brasileira em geral continuam pautadas a construir uma agenda propositiva a ser pactuada no enfrentamento dos reais problemas nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no caminho de uma nova economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20 anos, considerando a sua dimensão continental, as potencialidades nacionais e regionais, seus ativos naturais e a diversidade étnica e cultural. A base dessa construção democrática é a educação, a ciência e a tecnologia que devem ser incorporadas como estruturantes e estratégicas melhorando a qualidade de vida dos que trabalham, da população negra e de toda a sociedade.

Assim, a população negra e a sociedade brasileira podem e devem se encontrar, deixando de serem fugidas, reafirmando as nossas humanidades ancestrais, superando os conflitos e as contradições historicamente construídos, de uma maneira inclusiva na sua organização política, econômica e social, com uma melhor distribuição da riqueza produzida por toda a sociedade.

Estamos desafiados(as).

*UFBA, Professor, doutor, da Oficina da Cátedra da UNESCO-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia

2 comentários:

Marcos Sorrentino disse...

Muito bom, George. Da resistência à ação transformadora de uma realidade que permanece opressiva. O grito do Recôncavo Baiano para o Brasil e para o mundo - um outro modo de produção e consumo, de ser e estar na Terra, com a terra e em cada território é possível e necessário.

Anônimo disse...

Gracias George, que interesante. Me ayuda a refrescar mi portugués.