O Globo
O sucesso do podcast “A mulher da casa
abandonada” produziu um circo midiático. As reações do público mostram uma
estranha mistura de sensacionalismo, punitivismo de esquerda e cultura das
celebridades na era da internet.
O podcast, produzido pelo talentoso jornalista Chico Felitti, investiga uma mulher misteriosa que habita uma mansão abandonada no bairro de Higienópolis, em São Paulo. A narrativa aos poucos revela que ela é Margarida Bonetti, uma brasileira de classe média alta que se mudou para os Estados Unidos e lá foi acusada, com o marido, de manter a empregada brasileira em condições análogas à escravidão. O marido foi julgado e preso pelo crime, mas ela conseguiu fugir para o Brasil e escapar da Justiça. Em São Paulo, permaneceu na casa da família com poucos recursos, e o imóvel foi aos poucos se deteriorando até chegar ao estado em que se encontra hoje. Como o caso aconteceu há mais de 20 anos, o crime prescreveu.
Desde o lançamento do podcast, legiões se
aglomeram em frente à casa fazendo selfies ou tentando tirar uma foto da mulher
misteriosa. Jornalistas sensacionalistas exploram o frenesi criando falsas
expectativas: “Será que a mulher da casa abandonada finalmente vai presa?”. A
Polícia Civil de São Paulo, atendendo a denúncias de vizinhos, entrou nesta
semana na mansão para verificar se havia “abandono de incapaz” (a mulher
misteriosa foi vista como incapaz deixada pela família). Defensores de direitos
dos animais entraram na mansão na semana anterior para resgatar cachorros, sob
a suspeita de que eram submetidos a maus-tratos. A cada tanto, ativistas passam
e gritam impropérios ou picham o muro da mansão. Na semana passada, uma janela
da casa recebeu um disparo de arma de fogo. Cada aparição da mulher que vive
escondida no imóvel é registrada em fotos, vira assunto no Twitter e atrai mais
e mais curiosos.
Parte da agitação se deve à natureza do
caso e à maneira habilidosa como foi narrado. Muitos ficaram curiosos com a
mulher misteriosa e perturbada, procurada pelo FBI, que vive reclusa numa mansão
deteriorada num dos bairros mais ricos de São Paulo. O caso também explicita
tendências mais profundas da cultura política contemporânea.
Em geral, o punitivismo é atribuído à
cultura política da direita, que celebra a violência policial e defende a posse
de armas para prevenir o crime. Mas esse traço também está presente na
esquerda, ainda que mais restrito a crimes e transgressões em situações de
opressão.
É o caso de Margarida, acusada de agredir e
submeter uma empregada doméstica a condições análogas à escravidão. O podcast
toma cuidado para conter o ímpeto punitivista dos ouvintes, incluindo uma
declaração no começo dos episódios condenando qualquer forma de agressão a ela.
Mas não é suficiente.
O tiro disparado contra a casa mostra como
o frenesi punitivista pode facilmente se converter em tragédia. A justiça
popular dos xingamentos, das perseguições e das agressões é uma forma degradada
de justiça. São princípios dos direitos humanos o direito à defesa e a pena
proporcional à gravidade do delito. Se é verdade que a Justiça institucional
mostrou neste caso seus limites, já que o grave crime de Margarida ficou impune
após prescrever, a justiça popular não parece uma solução melhor. Ela é
sumária, elimina o direito de defesa e não é proporcional.
É bem verdade que injustiças contra as
pessoas pobres e negras são muito mais graves e frequentes do que contra
patroas acusadas de escravizar as empregadas. Mas não é por isso que devemos,
em certos casos, transigir com a punição sumária e arbitrária.
Justamente pela grande repercussão, o caso abre um precedente perigoso. Há algo de muito preocupante quando o pequeno setor que geralmente defende os direitos humanos acredita que há situações e delitos para os quais esses princípios não precisam valer.
Um comentário:
O direitos humanos tem de ser pra todos,claro.
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