O Estado de S. Paulo.
A política não tem o direito de convocar religiosos como cabos eleitorais e manipular as escolhas espirituais de quem busca suas próprias luzes
A chave do cidadão não está virando bem na
fechadura das instituições. A escalada da ambição mundana manipula a fé de
forma profana, o Parlamento ludibria a Constituição e a violência começa a
visitar as eleições.
Há, no Brasil, uma ordem constitucional que
identifica um regime democrático, mas não há uma ordem cultural, um costume
provido de um sentimento que caracteriza plenamente a democracia. As elites do
poder não se sentem constitucionalmente iguais aos brasileiros, que acabam
resignados a Deus-dará.
Políticos, ministros, juízes, procuradores,
militares e policiais deveriam cumprir com seu dever atuando nos seus lugares
de forma exemplar. Por mais preparados, motivados e articulados que se sintam,
não podem seguir impondo doutrina própria, conceitos corporativos, sem
conectividade social. O rapapé entre o Executivo e o Legislativo está
desconectando a política das regras legais como moinhos viciados que se
movimentam pelo vento de si mesmos.
Caneta, arma, querer é poder são falácias de força. Cegueira do topo querer se sustentar tirando a grandeza da posição hierárquica que é respeitada se aceita a contraparte de controle que a limita. Barganha, arbítrio, isso diminui a capacidade de ação democrática ao criar conexões e camuflagem entre governo e oposição.
As leis não são madeira para queimar. A
maioria dos empresários e dos trabalhadores clama por um governo estável, amigo
de regras, contratos, tratados, acordos à luz do dia. A minoria, amiga do
usufruto de governantes, tem sido mais influente e tolera solavancos, as
improvisações, pois sua forma de proteção não é a Constituição.
A desinstitucionalização geral é uma das
armas combinadas da má-fé, patologia da ambivalência. Faz chantagem com a
necessidade social, não apura delitos e projeta um Jesus partidário, sem ênfase
poética e espiritual. Carestia, inflação, violência política, improbidade,
guerras de religião – o Brasil precisa estar em mãos capazes de tornar as
coisas mais bonitas para nosso povo. O mundo do progresso exige um projeto de
nação em que o cidadão possa viver segundo suas próprias convicções, sem a
defesa violenta de ideias ou a pressão transgressora de ninguém.
Se a Califórnia decide que contra roubo de
até US$ 100 a polícia não está autorizada a agir, reconhece o fracasso das
políticas de proteção social no país mais rico do mundo. Enquanto isso, aqui, a
mistura de religião e política consolida a decadência do Estado Social de que
nem mais Deus duvida.
Os erros se agravam quando evangélicos
aceitam que o escotismo e o emotivismo interesseiro da política interfiram nas
controvérsias morais das igrejas. A política não tem o direito de convocar
religiosos como cabos eleitorais e manipular as escolhas espirituais de quem
busca suas próprias luzes. Nem tem titularidade para se meter no direito de
livre prática da fé para se beneficiar do seu uso como autocracia teológica.
Administrar seus próprios assuntos é o
princípio de um sistema justo em que cidadãos livres toleram a objeção de
consciência, não aceitam o preconceito nem se acham pessoas especiais, únicas e
isoladas. Estados confessionais e governantes que usufruem de igrejas como
bureau eleitoral não governam para iguais. A mesma limitação de competência se
exige do Estado laico, se quer assegurar a liberdade de crença.
A defesa da equidade dirigese aos
princípios da justiça coletivamente partilhada, e não a discussões sobre
verdade e transcendência. Se as premissas da consciência são fundamentadas na
fé, as da justiça social o são na evidência, na liberdade e na igualdade. Se um
religioso se corrompe e não é atormentado na sua fé, deve estar certo de que só
há salvação na sua igreja. Quando enfrenta a doutrina do Estado de Direito,
invoca o princípio da tolerância religiosa com um ardil. Advoga que seus fiéis
é que devem separar o joio do trigo, pois não pode ser réu quem serviu a um
Estado enganadoramente laico.
Melhor confessar, se arrepender. Evite o
anátema, pois, neste caso, amar a justiça não significa odiar a Deus. Confie na
salvação também fora da igreja.
A igreja reformada deveria estudar melhor a
história do protestantismo, as revoltas e os dogmas que o formaram. E reler
Martinho Lutero, que dizia que todo homem odeia a verdade, especialmente se diz
respeito a ele.
Em todas as religiões ou entre ateus e
agnósticos existem cidadãos exemplares. A espiritualidade ajuda muito a maioria
das pessoas, a constitucionalidade ajuda todos. A intolerância a artigos de lei
enfraquece os argumentos na defesa da tolerância aos artigos de fé.
Quem se acha perfeito costuma exigir pouco
de si mesmo. O poder oferece sucessivas distrações, e uma das mais graves diz
respeito à confusão entre a ética das relações privadas e a das relações
públicas. A ética diz respeito ao ato de fazer em si mesmo. Se o ato original é
imoral, suas consequências se completam.
Na vida pública, quem tergiversa pode se
encontrar com a fatalidade do julgamento de seus atos. Se escapar, que se
acerte com seus deuses para não ter uma velhice cheia de litígios com a
consciência.
*Sociólogo
Um comentário:
Nunca deu certo a fusão de política e religião.
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