Valor Econômico
Quadro para as contas públicas à frente
deve ser marcado por receitas em queda e despesas supostamente transitórias que
se transformam em permanentes
Os riscos fiscais para 2023 e depois se acumulam, num momento em que os números sobre a situação atual das contas públicas mostram um resultado mais favorável. A partir do ano que vem, porém, a arrecadação não deverá ter um comportamento tão benigno quanto em 2021 e 2022, num cenário de inflação mais baixa e preços de commodities menos exuberantes. Além disso, haverá pressões importantes sobre as despesas - o valor do Auxílio Brasil de R$ 600 deverá se tornar permanente, a pressão por reajuste do funcionalismo público vai se intensificar e os gastos com juros vão crescer, uma vez que a Selic terá que ficar mais alta por mais tempo. Para completar, as seguidas manobras para driblar o teto de gastos, com o uso de Propostas de Emendas à Constituição (PEC), minaram a credibilidade das regras que buscam disciplinar as contas públicas.
Uma das consequências desse cenário tem
sido a alta do dólar, dos juros futuros e de medidas do risco Brasil, como o
CDS (credit default swap, uma espécie de seguro contra calotes). O movimento
também é influenciado pelos temores de recessão global, num ambiente em que o
Federal Reserve (Fed, o banco central americano) e o Banco Central Europeu
(BCE) promovem altas de juros mais fortes para combater a inflação. A piora do
risco fiscal doméstico, contudo, é fundamental para explicar o comportamento
dos ativos brasileiros.
Relatório d.a A.C. Pastore & Associados
destaca que a moeda americana passou da casa de R$ 5,10 para a R$ 5,40 nos 30
dias até 15 de julho, o que fez o real ser uma das moedas com uma das maiores
depreciações em relação ao dólar no período. Na semana passada, a pressão
continuou, e a divisa americana fechou sexta-feira perto de R$ 5,50. Para a
consultoria do ex-presidente do Banco Central (BC) Affonso Celso Pastore, “a
reação atual dos preços dos ativos é apenas uma primeira advertência, à qual se
seguirão outras”, uma vez que o quadro fiscal à frente deve ser marcado por
receitas em queda e “despesas supostamente transitórias que se transformam em
permanentes”.
Grande parte da melhora fiscal recente se
deveu à inflação elevada e à alta dos preços de commodities. Esses fatores
aumentam a arrecadação, e os índices de preços nas alturas também contribuem
para inflar o PIB em termos nominais, colaborando para a redução do déficit e
da dívida do governo em relação ao tamanho da economia. Nesse cenário, a dívida
bruta, que terminou 2020 em 88,6% do PIB, atingiu 78,3% do PIB em abril, o dado
mais recente.
Além disso, o governo contribuiu para
segurar despesas ao não conceder nenhum aumento acima da inflação para o
salário mínimo, o que limita a expansão de despesas com aposentadorias, pensões
e benefícios sociais, e tampouco dar reajustes lineares para o funcionalismo,
como diz Fernando Montero, ex-secretário-adjunto de Política Econômica do antigo
Ministério da Fazenda, hoje na corretora Tullett Prebon. Essas duas medidas
ajudam a conter gastos correntes importantes, por controlar as despesas com
benefícios previdenciários e salários dos servidores, lembra ele.
O cenário fiscal para 2023 em diante,
porém, está nublado. Para começar, o desempenho extremamente positivo da
arrecadação não deverá se repetir. A A.C. Pastore nota que “a extraordinária
elevação da receita nos últimos 18 meses se deve em grande parte ao aumento dos
preços do petróleo e das commodities, e até aqui está sendo ajudada pelo
crescimento do PIB brasileiro ‘acima do esperado’ [a economia tem avançado com
mais força do que se previa na virada do ano, num ambiente marcado por vários
estímulos do governo]”.
No entanto, a perspectiva é que “a
desaceleração mundial seja forte e reduza os preços do petróleo”, diz a
consultoria. Para a A.C. Pastore, esse quadro, “somado à elevada probabilidade
de uma recessão no Brasil, deve levar ao mau desempenho da receita da União e
dos Estados em 2023”. O segundo ponto é que despesas criadas supostamente como
temporárias deverão se tornar permanentes, como aponta a consultoria. O caso
mais óbvio é o da elevação do valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600,
aprovado na chamada PEC das Bondades, ou PEC Kamikaze, que inclui R$ 41,5
bilhões em gastos a serem pagos fora do teto no segundo semestre, como a
elevação de R$ 200 no valor do benefício, além do aumento de 100% do vale-gás e
do bolsa caminhoneiro de R$ 1.000. Ontem, no lançamento de sua candidatura à
reeleição, o presidente Jair Bolsonaro disse que o Auxílio Brasil será mantido
em R$ 600 no ano que vem, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também já
afirmou que o valor não será alterado se vencer as eleições de outubro. Nas
contas do Banco Safra, a manutenção do benefício em R$ 600, pago a quase 20
milhões de famílias, elevaria “o custo anual do programa dos atuais R$ 86
bilhões para algo como R$ 144 bilhões”.
Outra fonte de pressão para 2023 virá do
funcionalismo, sem reajuste linear na atual administração. “Com uma inflação
ainda alta em 2023, será praticamente impossível ao governo evitar reajustes
aos servidores”, diz a A.C. Pastore.
Além disso, as manobras patrocinadas pelo
governo e pelo Congresso para aumentar despesas e tentar melhorar a
popularidade de Bolsonaro minaram ainda mais a credibilidade das instituições
fiscais do país, como o teto de gastos, o mecanismo que limita a expansão das
despesas da União à inflação do ano anterior. O teto não é perfeito, mas foi
muito importante para dar maior previsibilidade para as contas públicas no
longo prazo, ajudando a reduzir os juros. Ficou claro, porém, que os políticos
não têm pudores em driblar o instrumento para acomodar despesas eleitorais e
para garantir recursos para as emendas de relator, que compõem o chamado
orçamento secreto.
Nesse cenário, o quadro fiscal a partir de 2023 é bem mais delicado do que sugerem os números atuais do déficit e da dívida pública. Quem vencer as eleições enfrentará um ambiente difícil, em que o teto de gastos, a principal âncora fiscal do país, perdeu grande parte de sua credibilidade. Como a inflação no ano que vem tende a ficar bem acima da meta a ser perseguida pelo BC, de 3,25%, os juros deverão seguir elevados por bastante tempo, aumentando os gastos financeiros do setor público. Se não tiver um programa crível para a condução das contas públicas, o próximo governo ficará às voltas com um equilíbrio ruim, combinando juros altos, inflação resistente e crescimento baixo.
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