Correio Braziliense
A leitura das 1.584 páginas dos três
volumes do livro Escravidão, de Laurentino Gomes, passa a sensação das 1.575
páginas (na edição Nova Aguilar) do Guerra e paz, de Tolstói: um gostinho de
quero mais. O leitor fica instigado a conhecer mais do tema e a continuar o
prazer de ler. No caso de Guerra e paz, o leitor quer conhecer a continuação da
história do povo russo. Com o Escravidão, queremos saber sobre a continuação
desse sistema, mesmo depois da abolição. O próprio Laurentino Gomes conclui o
livro com o capítulo "O dia seguinte", ao Treze de Maio, mostrando a
abolição incompleta, 130 anos depois. Ele indica a desigualdade nas condições
de vida entre negros e brancos e afirma que "o racismo se mantém como um
traço característico da sociedade brasileira".
Fica faltando a história da escravidão no pós-abolição, como se os três volumes não bastassem para contar a saga do escravismo não terminado, cuja maldade tem o porte da barbárie do holocausto, do apartheid, persistindo sob a forma da desigualdade crescente, e durou muito mais e atingiu mais pessoas. A Lei Áurea foi duplamente escamoteada: não ofereceu educação, que não contemplava, e pagou indenização, que prometeu não fazer.
Uma escravidão moderna continuou por 100
anos sob a forma da negação de escola para os descendentes sociais dos
escravos. Até o século 21, quando entram em vigor a lei do Piso Nacional
Salarial do Professor e a obrigatoriedade de vaga em escola pública dos quatro
aos 17 anos, mas mantém o sistema de educação dividido entre "escolas senzala"
e "escolas casa grande", conforme a origem social do aluno. Essa
desigualdade é uma trincheira do escravismo.
Rui Barbosa decidiu queimar os arquivos da
escravidão para impedir que os escravistas e seus descendentes cobrassem e
recebessem indenização por causa da desapropriação do direito adquirido de
possuir seres humanos que tinham sido comprados. Mas, desde então, cada
orçamento público brasileiro é uma transferência de renda para investir em
benefício dos descendentes sociais dos donos dos escravos, tirando recursos de
projetos sociais que beneficiariam os pobres, descendentes sociais dos
escravos, na sua maioria descendentes também raciais.
No ano 134° da Abolição, um único item,
secreto (de R$ 20 bilhões) no orçamento, e sem benefícios claros para a vida
dos pobres, permite indenizar aos descendentes atuais de seus donos, com R$ 25
mil para cada um dos 800 mil escravos cativos em 1888. Soma-se a isso os
subsídios e investimentos para a parcela rica: ao longo de três décadas
percebe-se que a indenização continua sendo paga, em montantes muito maiores do
que se imaginava à época. Por toda nossa história, a República tira dinheiro
que deveria ser investido na educação, saúde, moradia, emprego dos descendentes
dos escravos e os utiliza para financiar conforto e patrimônio de classes
privilegiadas.
Tolstói não escreveu uma complementação
para Guerra e paz, mas esperamos o quarto volume do livro Escravidão: os anos
seguintes à Abolição. Enquanto esse novo volume não vem, cada casa brasileira deveria
ter os três primeiros para contar a saga escravocrata, que durou quase todo o
tempo de nossa história. Nos fazer perceber que quase todos os problemas que
atravessamos — uma barreira ao progresso e um lamaçal na política — decorrem
daqueles 400 anos que Laurentino nos descreve desde o primeiro leilão na cidade
de Lagos, em Portugal. Cada criança deveria aprender a ler conhecendo essa
chaga sobre a qual o Brasil foi construído. Esta seria uma maneira de ensinar,
pelas informações, passar gosto por ler, graças ao belo texto do livro, e
despertar indignação com as maldades sociais que nossa elite política e
econômica pratica há séculos. Além disso, usar o livro como um despertador
moral e político para querermos fazer o Brasil melhor e mais belo, completando
a Abolição.
A alma de um povo é construída por seus
escritores, artistas e poetas quando eles são capazes de reunir rigor no
conhecimento histórico com genialidade para escrever bem. Ainda mais quando
suas informações e textos passam empatia pelo lado injustiçado da população.
Escravidão é para ser lido e relido, porque está escrito com a qualificação de
um investigador e a maestria de um escritor: consegue o rigor da análise, com a
beleza do texto, sem esconder o horror do tema. Com essa saga, o Brasil tem seu
Guerra e paz, descrevendo uma realidade que parece ficção, tanto quanto Tolstói
escreveu uma ficção que parece realidade.
*Professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação
2 comentários:
Para quem se tocou com este belo texto de Cristovam Buarque e quiser se aprofundar tenho uma recomendação. Meu amigo Alexei Bueno organizou um belo livro: A Escravidão na Poesia Brasileira: Do século XVII ao XXI. É a única antologia sobre a escravidão. Reúne cerca de 80 poetas e mais de 200 poemas, alguns deles esquecidos, outros inéditos.
Muito bom o artigo,me deu vontade de ler tudo sobre o tema.
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