Folha de S. Paulo
Recepção de órgão de d. Pedro é espetáculo
grotesco (e meio nojento)
Ainda não consegui decidir se acho a recepção
do coração de dom Pedro 1º com honras de Estado um espetáculo
apenas grotesco ou grotesco e nojento. Estamos, afinal, falando de um músculo
cardíaco já meio necrosado, que só não se decompôs inteiramente porque é
guardado num jarro cheio de formol. Surpreende-me que adultos supostamente
racionais dos dois lados do Atlântico cultuem um pedaço de cadáver, baseados na
falsa crença de que o miocárdio retenha magicamente as virtudes de quem o
portou.
Se a exibição do coração imperial tem algo de duvidoso, o fenômeno psicológico que a sustenta, o essencialismo, é dos mais fascinantes. Ele está na origem de algumas das melhores e das piores características de nossa espécie.
O essencialismo,
que pode ser tentativamente definido como nossa tendência de buscar uma
natureza secreta por trás das coisas, parece ser inato. Com nove meses, bebês
já são capazes de inferir qualidades invisíveis de objetos. Depois de
apresentados a caixas musicais, eles esperam que todos os objetos com a mesma
forma toquem algo.
Não se trata de um simples capricho. O
essencialismo se instalou em nossas mentes porque tem valor adaptativo. Ao nos
converter em observadores atentos e catalogadores compulsivos, faz com que não
confundamos alface com cicuta e com que guardemos prudente distância de grupos
semelhantes aos que nos atacaram no passado. Menos prático, mas não menos belo,
o essencialismo também explica nosso gosto por filosofia, em especial pela
ontologia. Na coluna das coisas negativas, podemos marcar racismo, xenofobia,
nacionalismo e superstição.
Dado que o essencialismo integra nossa arquitetura cerebral, não faz nem sentido tentar reprimi-lo nas pessoas. Mas não vejo motivo para estender essa tolerância a Estados, que deveriam ser atores racionais, capazes de testar e justificar cada uma de suas ações em termos de custos e benefícios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário