Uma das principais críticas literárias do país, autora lança 'Coros, contrários, massa', seu primeiro livro em 10 anos
Por Bolívar Torres / O Globo
Há reflexões que acompanham a vida de um
pesquisador por muitos anos. Uma das maiores críticas literárias do país, Flora
Süssekind levou uma década para reunir em livro os seus anseios intelectuais
mais recentes. O resultado é “Coros, contrários, massa” (Cepe), que põe fim a
uma longa espera por lançamentos da professora e pesquisadora. Com 20 textos
ampliados e dois ensaios inéditos, o livro explora diversos desdobramentos
sobre a questão do coro, ao qual a autora vem se dedicando.
Na construção do pensamento crítico de
Flora, o coro é uma chave para entender as multiplicidades de vozes que formam
a nossa experiência contemporânea. A autora mira o inquieto horizonte cultural
e político, sem tirar os olhos do retrovisor. Sobrepondo passado e presente,
cinema, artes plásticas e literatura, vai de João Cabral de Melo Neto e Clarice
Lispector às tirinhas de André Dahmer, passando pela produção de escritores da
atualidade como Veronica Stigger e Angélica Freitas.
Contracoro
O livro chega um ano após a polêmica saída
da autora da Casa de Rui Barbosa, onde ela atuou como pesquisadora por quase
quatro décadas. Era o auge da tensão entre os servidores e
a presidente da entidade, Letícia Dornelles. Ao ser empossada, em
2019, ela
exonerou de seus cargos Flora e outros quatro chefes de pesquisa. Flora
poderia ter ficado, mas resolveu se aposentar da Casa Rui.
— É claro que a conjuntura política do país teve papel decisivo na demora (em lançar o livro) — conta Flora. — Eu perdi um coro de que fazia parte desde bem jovem, o centro de pesquisa da Casa Rui. Isso é muito forte, claro. Mas senti sobretudo necessidade de observar o que aconteceria no Brasil sob um governo de extrema-direita, de observar os coros da ultradireita. E contrastá-los aos contracoros trabalhados em experiências artísticas que, nesse contexto, se imporiam com inteligência crítica e autonomia. Assim como ao desânimo, à paralisia, à espera que acometeriam a muitos de nós.
A saída da pesquisadora da instituição
provocou comoção no meio intelectual. Aluna de Silviano Santiago e Luiz Costa
Lima nos anos 1970, vencedora do Jabuti nos anos 1980, Flora marcou época dando
aula na PUC-Rio, na UFF e na Unirio, onde trabalha até hoje. É responsável por
estudos originalíssimos sobre o fascínio pela técnica e as escrituras sonoras
(“Cinematógrafo de letras”, 1987) e o relato de viagem (“O Brasil não é longe
daqui”, 1990). Para muitos, ela revolucionou os estudos de Letras na
universidade.
— Flora surgiu como crítica num momento em
que vai se consolidando a substituição da imprensa pela universidade como
principal espaço do debate literário no Brasil — observa o editor e pesquisador
Miguel Conde, professor adjunto de Teoria Literária na UFRJ. — Ela soube criar
um modo de atuação que unia de maneira muito particular o rigor da pesquisa
acadêmica ao ímpeto do debate público.
Literatura de atrito
“Coros, contrários, massa” não foge do
debate. Nos ensaios focados na experiência histórica presente, a autora aponta
um tema que não poderia ser mais atual: o “esgarçamento” do pacto social
formulado a partir da Nova República, que vem tornando a convivência
democrática cada vez mais difícil. O contexto da nova produção, resume Flora, é
de “uma politização mais enfática nas formas de intervenção cultural frente à
expansiva investida conservadora” no país.
Esse cenário traz um duplo efeito. Se, por
um lado, parece inviabilizar uma convergência entre os artistas, por outro
promove uma multiplicação de manifestações culturais marcadas por um
“tensionamento de forças contrárias”. É aí que surge a coralidade, que se dá
por “desacordos internos”, “forças desarmônicas”, uma “disjunção quase audível”
e outros termos que remetem a atrito, descontinuidade e contradição.
— As coralidades proliferam exatamente
quando o coro parece não estar mais lá. Não parecem emergir de uma comunidade,
mas exatamente de sua falta — explica Flora. — Os experimentos corais que
funcionam como processos e lugares de transformação me interessaram
particularmente. Procurei observar essas manifestações, por exemplo, em
figurações cruentas das classes médias realizadas por (escritores como) Vilma
Arêas e André Sant’Anna, e em certas trajetórias individuais movidas por
variação interna metódica, como em (poetas como) Augusto de Campos, Carlito
Azevedo, Lu Menezes.
O passado como farsa
Flora busca entender como o país irrompeu
nas manifestações culturais recentes. Com o impeachment de Dilma Rousseff,
recursos artísticos como o looping e o espelhamento evocam a repetição
histórica e um passado que volta como farsa. Na nossa década de 2020, em obras
de Grace Passô, Giselle Beiguelman e Nuno Ramos, a figura do parasita aparece
com força para iluminar uma época de “fortíssimo potencial destrutivo”.
Ela identifica ainda um esforço estético
(as "epifanias negativas") que se contrapõe a um "projeto
cultural totalitarizante e sem dimensão autorreflexiva de país", definido
por ela como "mística verde-amarela". Outro ponto é a ideia de exílio
provocada pelo desconforto crescente em relação às exclusões estruturais do
país. Chama a atenção de Flora a retomada da “Canção do exilio” de Gonçalves
Dias por Angélica Freitas em um poema sobre recente ataque policial a cavalo a
professores grevistas em Porto Alegre.
— Eu cheguei a pensar em retomar um texto
mínimo que publiquei há muitos, que chamava Exílios, e desenvolvê-lo melhor
nesse livro — diz Flora. — Talvez faça isso depois. Nesse texto eu examinava o
exílio em dois autores não exilados, Ana Cristina Cesar e Paulo Leminski. Nos
últimos anos me chamou a atenção a retomada inesperada da canção do exílio por
Angélica Freitas em poema sobre recente ataque policial a cavalo a professores
grevistas em Porto Alegre. Mas há exílio igualmente em certas geografias de
desenho propositadamente difuso, pautadas pela indeterminação metódica, como em
trabalhos de Luiza Baldan e em muitos dos poemas de Marília Garcia.
Autores influencers
Flora também passa rapidamente pelo debate
sobre a profissionalização da escrita — um assunto muito em voga a partir dos
anos 2000. Ela lembra que a trajetória de autores como Machado de Assis e
Nelson Rodrigues já havia sido marcada pela profissionalização em outras
épocas, mas lembra que hoje esse mesmo processo está dependente de um fluxo
mais rápido.
— É preciso inventar caras novas, é preciso
criar nichos lucrativos, transformar artistas e escritores em quase influencers
para que sua contratação e edição garantam divulgação e venda mínima imediata —
lamenta a pesquisadora. – Coisas assim são muito visíveis, muito patéticas.
Atores despreparados, mas cheios de seguidores, têm contrato certo. Para
garantir esse público, o grau automimético dessas manifestações é altíssimo,
porque o olho está sempre no reconhecimento, não há lugar para a consciência
crítica do que se faz. E, na verdade, não há propriamente profissionalização
nesses casos, mas escravização a “curtidas” e “seguidores, e um único destino:
tornar-se um trending topic.
Flora destaca, por outro lado, o uso
inventivo das redes sociais e dos memes por escritores como Augusto de Campos e
André Vallias:
— Detectada a lógica do mercado, é possível
atuar sobre ela — diz ela. — Mas escritores e artistas, quando pré-fabricados,
a diluição salta aos olhos. E os esgares de meros cacoetes sublinham a própria
irrelevância.
Fora da Casa de Rui Barbosa, Flora continua
se dedicando a projetos iniciados lá, como novas edições do “Cultura brasileira
hoje: Diálogos”, que reúne depoimentos de artistas de diversos campos. Também
julga “fundamental” a sua interlocução com alunos das universidades. Ela teme,
porém, um cenário de desmonte nas ciências do país — preocupação, aliás,
refletida no ensaio “Vozes enlutadas”, incluído no fim do novo livro.
— No campo das ciências humanas e da
pesquisa artística, esse desmonte parece ainda mais intenso — diz ela. —
Sobretudo porque não há consciência do quanto de trabalho minucioso, exigente e
de longa duração ela exige. Bastaria listarmos, nesse sentido, os cursos de
pós-graduação que estão sendo fechados, a quantidade de estudiosos que está se
vendo forçada a deixar o país, de alunos que abandonam graduações e
pós-graduações.
Leia a entrevista completa
Este livro havia sido
anunciado em 2018 e acabou saindo só agora. Por que foi adiado?
Isso do tempo, da demora, é sempre curioso.
Há ensaios e projetos que encontram mais rapidamente a sua configuração. Outros
não. Alguns fazem questão de nos acompanhar por muito tempo, muito tempo mesmo.
Eu transcrevi, logo no começo do livro, um comentário da poeta e ensaísta
argentina Tamara Kamenszain sobre o retorno, quinze anos depois, a um poema que
deixara de lado: “muitas vezes nossas paixões teóricas não coincidem com nossos
momentos vitais, ainda que sem dúvida os antecipem”. É preciso que, de algum
modo, essa coincidência atue. Às vezes simplesmente se adia, então, a escrita e
a questão se mantem de modo meio surdo como ponto de fuga do que se faz. Há,
nesse sentido, um ensaio muito bom de Roland Barthes sobre a presença/ausência
da dimensão teatral em Baudelaire. A irrealização dos projetos teatrais se
fazendo acompanhar, nesse caso, de uma teatralização que se expande por toda a
obra. Não é incomum, para um crítico, não conseguir escrever sobre certas
questões, certos autores, que, no entanto, permanecem cruciais para ele. E pode
acontecer de esse estudo se realizar ou não. Mas, pensando de modo bem
concreto, creio ter custado a montar esse livro porque imaginei, a princípio,
que poderia dar conta num volume só de todos os desdobramentos a que o estudo
do coro foi me levando ao longo dos anos. Incluindo certos estudos específicos
do coro teatral e da função coral no âmbito da poesia narrativa, duas trilhas
que evidentemente vão ser trabalhadas em outros livros – a que devo me dedicar
em seguida. Eu me dei conta de que, neste livro, importava sobretudo expor
certas estruturas corais meio fora de lugar sobre as quais venho me debruçando,
esses coros que, para além das coralidades teatrais, e de dentro de obras
singulares, de horizontes estéticos, geracionais, genéricos, e de contextos
históricos específicos expõem e desafiam a sua organização. Tratava-se de
demarcar um campo analítico contrastivo que mobilizasse distintas conceituações
e materializações do coro, procurando observar, ao mesmo tempo, obras
singulares e os contextos em que se ativam ou em que se refiguram essas
coralidades. Foi assim que o livro ganhou forma. Por outro lado, é claro que a
conjuntura política do país teve papel decisivo nessa demora. Eu perdi um coro
de que fazia parte desde bem jovem – o centro de pesquisa da casa rui. Isso é
muito forte, claro. Mas eu senti sobretudo necessidade de observar o que
aconteceria no Brasil sob um governo de extrema direita, de observar os coros
da ultradireita, ancorados na tecnopolítica das redes. E contrastá-los aos
contracoros trabalhados em experiências artísticas que, nesse contexto, se
imporiam com inteligência crítica e autonomia. Assim como ao desânimo, à
paralisia, à espera que acometeriam a muitos de nós.
O livro é (e não é) uma
reunião de textos em torno do coro, uma questão que você vem tratando há mais
de uma década. Lendo os textos dá para perceber um fio que liga todos eles, que
é uma reflexão de como as obras se relacionam com o país, que irrompe em suas
páginas. Às vezes há sintonia entre elas, às vezes se impõe um objeto não
identificado. Isso tem a ver com o seu interesse pela Por que esse tema lhe é
tão caro?
As coralidades proliferam exatamente quando
o coro parece não estar mais lá. Não parecem emergir de uma comunidade, mas exatamente
de sua falta. Ou, como observou o pesquisador teatral Christophe Triau, no
“trabalho de seu limite”. Há algo dessa ordem, me parece, na irrupção
necessariamente constante do Brasil nesses ensaios. Como no final do bastante
conhecido “Hino Nacional”, de Drummond, se poderia dizer, tendo em vista o
contexto recente, e o verdeamarelismo fascistizante, que “Nosso Brasil é no
outro mundo. Este não é o Brasil”. Essa percepção negativa meio que nos força a
perguntar de novo e de novo o que é, o que é? O que é o Brasil? As vias
analíticas não me parecem ser demarcações do tipo “caráter nacional” ou
restaurações da tradição literária ou historiográfica. A indagação sobre o coro
assume aspectos diversos e se volta aqui para diferentes manifestações - da cena
tópica de fundação característica à cultura literária brasileira ao horizonte
geracional visto sobretudo como campo tensional, de um momento como o da
tropicália, marcado por estruturais corais interartísticas, aos lamentos
lutuosos que respondem a circunstâncias históricas específicas, aos coros
dissonantes que movem obras distintas no pré e no pós-2013, e assim por diante.
Procuro estudar manifestações corais específicas e suas circunstâncias
históricas. Inclusive sua irrupção no presente. E procuro estudar esses
processos de coralização metódicos ou eventuais em trabalhos artísticos
individuais. Alguns deles com forte potencial transformador no interior desses
percursos (como a dramatização que invade a poesia de Carlito Azevedo) ou que
se transformam ao longo dessas trajetórias (como se pode observar no trabalho
de Zé Celso como encenador – vale a pena comparar os coros do Oficina nos anos
1960-70 e em encenações mais recentes, como "As Bacantes" e "Os
Sertões").
Você coloca que o
"esgarçamento" do pacto social do país, a difícil sustentação de uma
convivência democrática, inviabilizou a abrangência coletiva do coro. Como isso
influenciou a produção atual? Pode dar alguns exemplos de obras que se impõem a
partir desse desacordo externo e interno?
O que me interessou, sobretudo nos textos
focados na experiência histórica presente, é certa simultaneidade
contraditória. De um lado, há esse esgarçamento do pacto social, que sustentou
a agônica “Nova República”, e fica difícil projetar tanto uma convivência democrática
sem sobressaltos autoritários, quanto qualquer forma de comunidade imaginada de
amplitude nacional. O que tende a inviabilizar o coro enquanto personagem de
vasta abrangência coletiva, ou enquanto estrutura textual homogênea. Por outro
lado – e isso me parece significativo – houve, ao mesmo tempo, uma
multiplicação de manifestações corais em meios diversos. Essas irrupções são de
coralidades marcadas pelo desacordo interno, pelo tensionamento do campo
cultural que as abriga, por uma recusa decisiva à generalização e ao uníssono.
Os experimentos corais que funcionam como processos e lugares de transformação
me interessaram particularmente. Procurei observar essas manifestações, por
exemplo, em filmes como "Cinema Novo", "O Processo",
"Era o Hotel Cambridge", em figurações cruentas das classes médias
realizadas por Verônica Stigger, Vilma Arêas, André Sant’Anna, em construções
por ventriloquização e por geminação crítica e em certas trajetórias
individuais movidas por variação interna metódica – como em Augusto de Campos,
Carlito Azevedo, Angelo Venosa, Lu Menezes.
Você também aponta que uma
figura importante da literatura (e nas artes em geral) desta década é o
"hospedeiro", o "parasita". Por que?
O último ensaio do livro parte de fato da
imagem do parasita. O que tem lastro histórico – inclusive nos estudos sociais
brasileiros. Basta lembrar de A América Latina, de Manuel Bomfim, onde ele
pensa o processo de colonização como exemplo paradigmático de parasitismo
social. Ao pensar no caráter pregnante do parasitismo para observar
criticamente os anos recentes foi interessante perceber a incidência imagética
de hospedeiros e parasitas em campos de reflexão distintos, Nesse sentido
compilei comentários de Marcos Nobre, Márcio Pochmann, Luiz Eduardo Soares,
Nuno Ramos, Silviano Santiago. A figura do parasita, da relação biológica entre
comensal e hospedeiro, foi fator fundamental na visualização e na compreensão
de uma hora histórica marcada por fortíssima capilaridade e potencial
destrutivo. Ao lado de anatomias dessas tramas parasitárias, procurei
compreender, nos anos pós-impeachment, uma série de autodramatizações do
processo artístico-literário enquanto geminação. Trabalhos que circunstanciam e
confrontam, no campo cultural, o modelo parasitário expansivo com o qual
convivemos institucional e pessoalmente. Essas respostas artísticas de alta
voltagem crítica operaram sobretudo, a meu ver, por meio de
fabulações-em-dobra, de contracoralidades, de formas distintas de composição
por acoplamento. Chamei a atenção, nesse sentido, para a ventriloquização em O
que ela sussurra, de Noemi Jaffe, Lígia, de Nuno Ramos, Vaga Carne, de Grace
Passô, para sobreposições imagético-polifônicas — como no “Moteto para Lima
Barreto”, de André Vallias, no projeto Odiolândia, de Giselle Beiguelman, no
tríptico Asfixia/Mercadoria/O Comum, de Bia Lessa. E para alguns trabalhos que
intensificam, como parte ativa da obra, o rumor do extracampo – é o caso de
"Extraquadro", de Ricardo Aleixo, de "Cassandra", "A
gente se vê por aqui", "Aos vivos", "Dito e feito" e
"Perdido", de Nuno Ramos, e de "Alvos" e "Pisa na
Paúra", de Lenora de Barros.
Alguns autores revisitaram as
canções de exílio como uma forma de reação às circunstâncias históricas. Como
vê essa retomada do exílio (literal ou não) na produção atual?
Eu cheguei a pensar em retomar um texto
mínimo que publiquei há muitos anos no Jornal do Brasil, que chamava Exílios, e
desenvolvê-lo melhor nesse livro. Mas não fiz isso. Talvez faça isso depois.
Nesse texto eu examinava o exílio em dois autores não exilados - Ana Cristina
Cesar e Paulo Leminski. Nos últimos anos me chamou a atenção a retomada
inesperada da canção do exílio por Angélica Freitas em poema sobre recente
ataque policial a cavalo a professores grevistas em Porto Alegre. E sobre um
desconforto crescente com relação ao país, sua violência e suas exclusões
estruturais. Mas há exílio igualmente em certas geografias de desenho
propositadamente difuso, pautadas pela indeterminação metódica, como em
trabalhos de Luiza Baldan e em muitos dos poemas de Marília Garcia. Também na
sobreposição de caravelas e trajes coloniais a figuras contemporâneas, na
pintura de Arjan Martins e suas representações da diáspora africana. E há
exílio todo o tempo nos desdobramentos do eu que marcam a poesia de Franklin
Dassie – observem-se os livros Grandes mamíferos e Grande hospital. Isso para
ficar em pouquíssimos exemplos.
Uma questão que acaba
aparecendo nos ensaios são as discussões em torno do "profissionalização
do escritor", um conceito que ganhou força nos anos 2000. Acredita que
essa profissionalização foi responsável por inibir a capacidade de invenção e
disrupção dos autores?
Não sei. Porque não se pode esquecer que a
trajetória de Machado de Assis, de Drummond, de Nelson Rodrigues, foi marcada
pela profissionalização. E isso não restringiu o potencial crítico dessas
obras. Talvez o que atue agora é o fluxo rápido, rapidíssimo, do mercado. Como
já acontecia no campo da indústria musical. É preciso inventar caras novas, é
preciso criar nichos lucrativos, transformar artistas e escritores em quase
influencers para que sua contratação e edição garantam divulgação e venda
mínima imediata – coisas assim são muito visíveis, muito patéticas. Atores
despreparados, mas cheios de seguidores, têm contrato certo. O mesmo se dá no
campo editorial e assim por diante. Para garantir esse público, o grau
automimético dessas manifestações é altíssimo – porque o olho está sempre no
reconhecimento, não há lugar para a consciência crítica do que se faz. Sim –
muito se faz assim. E, na verdade, não há propriamente profissionalização
nesses casos, mas escravização a “curtidas” e “seguidores, e um único destino –
tornar-se um trending topic. Não há lugar, nesses casos, para a invenção. Por
outro lado, um escritor-inventor como Augusto de Campos – é impressionante como
ele soube aproveitar a lógica dos memes na produção recente dele, divulgada via
Instagram. Ou como o poeta André Vallias usa com inteligência o potencial
também disruptor da tecnologia e da difusão via redes sociais. Detectada a
lógica do mercado, é possível atuar sobre ela. Mas escritores e artistas,
quando pré-fabricados, a diluição salta aos olhos. E os esgares de meros
cacoetes sublinham a própria irrelevância.
Para um crítico, é mais
difícil de lidar com obras contemporâneas do que as do passado?
De certo modo sim, poque estamos imersos na
nossa hora histórica. Então há a tendência a naturalizar o vivido. A observar
com a perspectiva do hábito. A compreensão crítica do presente exige
deslocamento, desautomatização. Exige idealmente sobretudo a autonomia, a
independência e o descarte do reconhecimento fácil. Aprendemos sobretudo com o
que nos tira do lugar, com aquilo para o que nos parecem faltar categorias. As
obras que nos fazem pensar e redefinir o nosso próprio lugar crítico são
fundamentais nesse sentido. Inclusive obras do passado que subitamente nos
interrogam, exigindo também a própria descompartimentação. Os estudiosos de
fato relevantes, a meu ver, são aqueles capazes de esforço especulativo historiográfico
e de intervenção crítica no presente. Porque não há como repensar o passado sem
a consciência crítica do presente. E não há estudo histórico que não se limite
a trabalho de antiquário se os seus recortes não dialogam com agudo esforço de
compreensão do contemporâneo.
Há um desmonte da ciência no
país? Como enfrentá-lo?
Há sim. E no campo das ciências humanas e
da pesquisa artística esse desmonte parece ainda mais intenso. Sobretudo porque
não há infelizmente a consciência do quanto de trabalho minucioso, exigente e
de longa duração esse trabalho exige. É observar o negacionismo histórico que
se tentou veicular no Brasil, negando a experiência histórica da ditadura
civil-militar de 1964, ou o que significa o escravismo para a compreensão da
sociedade brasileira e do presente para relembrarmos a importância desses
estudos, para ficarmos em duas linhas de estudo. É pensar no quanto de trabalho
exige a formação de um músico, de um ator, de um artista plástico, um
historiador da arte, um pesquisador de literatura. É fundamental, igualmente, a
presença de pesquisadores de verdade na concepção, na organização e na
definição de linhas de estudo, exposição, na criação de grupos de trabalho em
acervos de grande porte como os da Biblioteca Nacional ou do Museu de Belas
Artes, ou mais focados como os da Casa Rui e de alguns centros universitários.
É fundamental que estudantes disponham de bolsas para a permanência nas
universidades e para o desenvolvimento de trabalhos cujos resultados atingem
todos nós. Pensando em apenas um dos pesquisadores que foram exonerados da Casa
Rui na mesma época que eu, no Charles Gomes, do campo dos estudos jurídicos, é
extraordinário como depois da dissolução de todos os projetos dele na
instituição, da dispensa de bolsistas e do encerramento do vínculo com a
cátedra Sérgio Vieira de Melo, ele foi capaz de encontrar meios de fazer o
Laboratórios Jurídico de atendimento a refugiados funcionar de modo
independente em outro local, aqui no Rio, e de a cátedra dar origem a outros
laboratórios semelhantes, agora no México, onde ele esteve em pós-doutoramento.
Se esse foi um enfrentamento de condições adversas de trabalho com resultado
excelente, não é, no entanto, o habitual. Bastaria listarmos, nesse sentido, os
cursos de pós-graduação que estão sendo fechados, a quantidade de estudiosos
que está se vendo forçada a deixar o país, de alunos que abandonam graduações e
pós-graduações. Creio que, entre as vozes enlutadas de que procuro tratar na
última seção do livro, sem dúvida há também o registro desses desmontes.
Na última entrevista para o
GLOBO, você falou da alegria que a sua atividade na Casa Rui lhe dava. Como tem
sido a vida depois de sair de lá? Ao que tem se dedicado?
Antes de entrar para o Centro de Pesquisa da Casa Rui, eu já trabalhava como professora na PUC do Rio, onde fiz toda a minha formação. Fiquei lá, sem contar com as monitorias, por seis anos. Também passei pela UFF como professora. E logo depois de entrar para a Casa Rui fui para a UNIRIO, para o Departamento de Teoria do Teatro, no Centro de Letras e Artes, e nunca saí de lá. Encontrei um ambiente de trabalho muitos bom na UNIRIO, o que me permitiu participar da criação dos cursos de Letras e de Estética e Teoria do Teatro e me permitiu, principalmente, conviver com alguns alunos excelentes todos esses anos. Essa interlocução tem sido fundamental para mim. Quanto aos projetos são muitos. Há alguns trabalhos coletivos da Casa Rui que ainda pretendo concluir – fechar mais um ou (pela extensão) talvez dois volumes da série de depoimentos Cultura Brasileira Hoje: Diálogos, a edição de dois volumes de seminários sobre Escrita e Visualidade e sobre Sousândrade. Além, é claro, da edição crítica do Guesa Errante de que participo como parte da equipe responsável. Sobre isso penso sempre numa carta que o Caio Fernando Abreu me mandou há muitos anos, e onde, a certa altura, ele fez um comentário muito bonito – “o tempo que temos, se estamos atentos, será sempre exato”. Talvez isso se dê não só com relação à vida de cada um de nós – como o Caio sublinhava - mas também com relação ao tempo de maturação ou, ao contrário, à intempestividade com que certas reflexões exigem vir a público. Entre o que exige maturação mais lenta – como o estudo sobre o coro (que ainda terá os dois desdobramentos de que falei) - e o que exige intervenção mais imediata – como aconteceu comigo nos períodos em que colaborei regularmente com o Jornal do Brasil e em textos como “Crítica como papel de bala”, “Coros dissonantes”, em 2013, ou “Ações artísticas, ações políticas”, em 2016, ou seminários como “Crítica de Intervenção” ou “Cultura e Capital”. Mas curiosamente a urgência e a necessidade de realização são igualmente fortes nos dois casos. São urgências distintas, mas só podemos realizar dignamente o que se impõe como necessidade de estudo e fator de compreensão de nossa experiência histórica.
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