O Globo
Quase duzentos anos depois da morte de Dom
Pedro I, o Brasil ainda se debate com o mesmo dilema: a luta entre o arcaico e
o moderno
Diante do coração de Dom Pedro I, Bolsonaro
perpetrou sua cantilena:
— Deus, pátria e família.
Mesmo o coração de um imperador (morto em
1834) tem o peso e tamanho semelhantes ao de um capitão (em 2022) — cerca de
340 gramas e 12 centímetros, equivalente a um punho fechado.
Embora com medidas semelhantes, são
corações diferentes. E não é porque um esteja morto e o outro ainda dispare ao
ver uma farda bem passada. Bolsonaro pode enfim ter encontrado um coração para
chamar de seu, mas, leitor de apostilados sobre a História Brasileira, talvez
reconheça nuances — ou não.
Deus, pátria e família soavam diferente aos
ouvidos e outros órgãos de Dom Pedro I.
O coração homenageado por Bolsonaro, como sabem Damares Alves e o pastor Guilherme de Pádua, pertence a um dos mais celebrados sátiros do século XIX. Educado por preceptores religiosos, foi um boêmio contumaz e um amante disponível — de seu caso com a marquesa de Santos, nasceram cinco filhos; com a irmã dela, baronesa de Sorocaba, outro rebento. Ainda teve filhos com duas francesas, uma uruguaia e uma monja portuguesa, Ana Augusta. Além das crianças nascidas durante seus dois casamentos oficiais. Ufa.
Personagem de cepa romântica, trazia um
cenho absolutista. Conflagrado por diversas forças no Brasil, se fez de
aborrecido, largou a coroa, pegou o chapéu, mais uma boa grana do Tesouro
Nacional (assim como seu pai) e se mandou, com a promessa de retomar o trono
português usurpado pelo irmão, Dom Miguel I, e de entregá-lo à filha, Maria da
Glória, depois rainha Maria II. Cumpriu o que prometeu. Bolsonaro nem sequer
consegue tirar o celular da mão de um youtuber.
Quase duzentos anos depois da morte de Dom
Pedro I, por tuberculose, o Brasil que agora recebe seu coração ainda se debate
com o mesmo dilema: a luta entre o arcaico e o moderno, entre visões
extrativistas e inclusivas. Dois dos documentos mais importantes da Era
Bolsonarista — a “Cartaàs Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado de
Direito” e os diálogos do grupo de empresários no WhatsApp — estampam em
atestado a luta ecumênica entre o bem e o mal.
Na Carta, assinada por mais de 1 milhão de
cidadãos, se encontram personagens defensores da transição climática; contra o
desmatamento amazônico; a favor de uma economia internacionalista; interessados
numa educação contemporânea e inclusiva, capaz de levar o Brasil a deixar de
ser uma terra de futuro sempre adiado. E em busca de um modelo que resgate os
milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza.
No grupo de empresários no WhatsApp, os
diálogos não se referem a um Brasil moderno ou trazem crítica à isenção (mais
uma) de impostos dos pastores, à aposentadoria privilegiada dos militares ou,
pior, ao escândalo do orçamento secreto — nada disso, o projeto frugal deles é
a implantação de outra ditadura.
As duas visões de Brasil se conflitam desde
ainda quando batia forte o coração de Dom Pedro I. Ao longo dos séculos, ora
uma avança, ora a outra reafirma o retrocesso. Em 1822, havia por aqui o
solitário Banco do Brasil — quebrado por Dom João VI (levou embora nossos
fundos). No mesmo período, nos Estados Unidos, já funcionavam perto de 50 instituições
financeiras que, entre outras atividades, ajudavam na construção de estradas de
ferro. Bancos privados, vale dizer.
A postura econômica atrasada de Dom Pedro
II levou seus gabinetes conservadores a restringir a circulação de dinheiro. Em
seu tempo, o padrão monetário não eram os “réis”, mas o fiado; daí o hábito de
estocar notas sob os colchões.
No período de Rui Barbosa como ministro da
Fazenda, no primeiro governo republicano, foram abertas dezenas de instituições
bancárias (o tal dinheiro saído das camas), que financiaram algumas estradas de
ferro. A modernidade de Rui Barbosa foi trombada (e ele exilado) pelo arcaico
da ditadura do marechal Floriano Peixoto.
Por aqui se bateu pela manutenção da
escravidão e se fez oposição feroz contra a industrialização, vista como
perigosa aos privilégios da elite escravagista. O czar Nicolau I, da Rússia,
também chicoteava quem falasse em instalar fábricas em seu território. Os
bolcheviques agradeceram.
Os diálogos dos bolsonaristas, ao exaltar
um golpe de Estado, corroboram o atual estado de coisas, como desrespeito aos
contratos (caso do teto de gastos e do calote nos precatórios) ou política
pública de incentivo ao armamento. Tudo isso resulta numa população mais
frágil, desprotegida e com menor grau de instrução. Opa, aí o círculo vicioso
se fecha. Pessoas com baixa escolaridade recebem salários baixos. Se a mão de
obra é destreinada, a produtividade da economia é pequena — e quase não gera
empregos. Só Jesus salva.
A obra “Por que as nações fracassam”, de Daron Acemoglu e James Robinson, ao falar de desastres como Quênia ou Argentina, demonstra que a elite bolsonarista segue o mesmo manual do atraso. Os tiozinhos do WhatsApp defendem uma visão arcaica, assim como os escravagistas brigaram para manter seus direitos de escravizar os negros. Uma economia atrasada é servidão. É a luta brasileira do bem contra o mal.
2 comentários:
Se ele fosse gay, Bolsonaro traria seu coração?
Análise perfeita,inclusive sobre o imperador garanhão idolatrado pelo Bozo.
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