segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Miguel de Almeida - Um coração para chamar de seu

O Globo

Quase duzentos anos depois da morte de Dom Pedro I, o Brasil ainda se debate com o mesmo dilema: a luta entre o arcaico e o moderno

Diante do coração de Dom Pedro I, Bolsonaro perpetrou sua cantilena:

— Deus, pátria e família.

Mesmo o coração de um imperador (morto em 1834) tem o peso e tamanho semelhantes ao de um capitão (em 2022) — cerca de 340 gramas e 12 centímetros, equivalente a um punho fechado.

Embora com medidas semelhantes, são corações diferentes. E não é porque um esteja morto e o outro ainda dispare ao ver uma farda bem passada. Bolsonaro pode enfim ter encontrado um coração para chamar de seu, mas, leitor de apostilados sobre a História Brasileira, talvez reconheça nuances — ou não.

Deus, pátria e família soavam diferente aos ouvidos e outros órgãos de Dom Pedro I.

O coração homenageado por Bolsonaro, como sabem Damares Alves e o pastor Guilherme de Pádua, pertence a um dos mais celebrados sátiros do século XIX. Educado por preceptores religiosos, foi um boêmio contumaz e um amante disponível — de seu caso com a marquesa de Santos, nasceram cinco filhos; com a irmã dela, baronesa de Sorocaba, outro rebento. Ainda teve filhos com duas francesas, uma uruguaia e uma monja portuguesa, Ana Augusta. Além das crianças nascidas durante seus dois casamentos oficiais. Ufa.

Personagem de cepa romântica, trazia um cenho absolutista. Conflagrado por diversas forças no Brasil, se fez de aborrecido, largou a coroa, pegou o chapéu, mais uma boa grana do Tesouro Nacional (assim como seu pai) e se mandou, com a promessa de retomar o trono português usurpado pelo irmão, Dom Miguel I, e de entregá-lo à filha, Maria da Glória, depois rainha Maria II. Cumpriu o que prometeu. Bolsonaro nem sequer consegue tirar o celular da mão de um youtuber.

Quase duzentos anos depois da morte de Dom Pedro I, por tuberculose, o Brasil que agora recebe seu coração ainda se debate com o mesmo dilema: a luta entre o arcaico e o moderno, entre visões extrativistas e inclusivas. Dois dos documentos mais importantes da Era Bolsonarista — a “Cartaàs Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado de Direito” e os diálogos do grupo de empresários no WhatsApp — estampam em atestado a luta ecumênica entre o bem e o mal.

Na Carta, assinada por mais de 1 milhão de cidadãos, se encontram personagens defensores da transição climática; contra o desmatamento amazônico; a favor de uma economia internacionalista; interessados numa educação contemporânea e inclusiva, capaz de levar o Brasil a deixar de ser uma terra de futuro sempre adiado. E em busca de um modelo que resgate os milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza.

No grupo de empresários no WhatsApp, os diálogos não se referem a um Brasil moderno ou trazem crítica à isenção (mais uma) de impostos dos pastores, à aposentadoria privilegiada dos militares ou, pior, ao escândalo do orçamento secreto — nada disso, o projeto frugal deles é a implantação de outra ditadura.

As duas visões de Brasil se conflitam desde ainda quando batia forte o coração de Dom Pedro I. Ao longo dos séculos, ora uma avança, ora a outra reafirma o retrocesso. Em 1822, havia por aqui o solitário Banco do Brasil — quebrado por Dom João VI (levou embora nossos fundos). No mesmo período, nos Estados Unidos, já funcionavam perto de 50 instituições financeiras que, entre outras atividades, ajudavam na construção de estradas de ferro. Bancos privados, vale dizer.

A postura econômica atrasada de Dom Pedro II levou seus gabinetes conservadores a restringir a circulação de dinheiro. Em seu tempo, o padrão monetário não eram os “réis”, mas o fiado; daí o hábito de estocar notas sob os colchões.

No período de Rui Barbosa como ministro da Fazenda, no primeiro governo republicano, foram abertas dezenas de instituições bancárias (o tal dinheiro saído das camas), que financiaram algumas estradas de ferro. A modernidade de Rui Barbosa foi trombada (e ele exilado) pelo arcaico da ditadura do marechal Floriano Peixoto.

Por aqui se bateu pela manutenção da escravidão e se fez oposição feroz contra a industrialização, vista como perigosa aos privilégios da elite escravagista. O czar Nicolau I, da Rússia, também chicoteava quem falasse em instalar fábricas em seu território. Os bolcheviques agradeceram.

Os diálogos dos bolsonaristas, ao exaltar um golpe de Estado, corroboram o atual estado de coisas, como desrespeito aos contratos (caso do teto de gastos e do calote nos precatórios) ou política pública de incentivo ao armamento. Tudo isso resulta numa população mais frágil, desprotegida e com menor grau de instrução. Opa, aí o círculo vicioso se fecha. Pessoas com baixa escolaridade recebem salários baixos. Se a mão de obra é destreinada, a produtividade da economia é pequena — e quase não gera empregos. Só Jesus salva.

A obra “Por que as nações fracassam”, de Daron Acemoglu e James Robinson, ao falar de desastres como Quênia ou Argentina, demonstra que a elite bolsonarista segue o mesmo manual do atraso. Os tiozinhos do WhatsApp defendem uma visão arcaica, assim como os escravagistas brigaram para manter seus direitos de escravizar os negros. Uma economia atrasada é servidão. É a luta brasileira do bem contra o mal.

2 comentários:

Anônimo disse...

Se ele fosse gay, Bolsonaro traria seu coração?

ADEMAR AMANCIO disse...

Análise perfeita,inclusive sobre o imperador garanhão idolatrado pelo Bozo.