O Globo
A inconsistência de Bolsonaro na capacidade
de liderar o conduz à imitação e à alucinação. Ele delira ao desejar repetir
Trump e os episódios no Capitólio
Analogias entre Bolsonaro e Ricardo III — o
tenebroso personagem de Shakespeare — costumam ater-se ao caráter perverso dos
tiranos, à maldade, traição e torpeza, à hipócrita desfaçatez com que manipulam
aliados e transformam adversários em inimigos. Porém, contido por uma
democracia que ataca, mas não consegue enfraquecer, Bolsonaro ainda não atingiu
— exceto pelo excedente de mortes causadas por descaso na pandemia — o grau de
violência sanguinária e vingativa do duque de Gloucester. Mas a cortina ainda não
se fechou.
Além das semelhanças, a diferença entre
ambos também pode ser reveladora. Bolsonaro não sofreu o destino da anatomia
que fez de Ricardo III um ser deformado, rejeitado pela mãe. Ao lamentar ser
obra de natureza enganadora, sentia-se lançado ao mundo antes do tempo: manco,
corcunda, disforme, inacabado, de tal modo imperfeito, quase um monstro diante
de quem os cães latiam quando passava. Ricardo III decidiu ser um vilão da pior
espécie.
Incapaz de suportar os tempos de paz, e de ser um amante que goza os dias suaves, armou tramas e conspirações. Sua má sorte física, porém, nem é causa, nem um álibi. Pois o estigma que igualou o feio ao mau foi desconstruído ao longo da História — e expresso em personagens da literatura e do cinema. Inversamente, a beleza jamais foi garantia — exceto para os tolos — de superioridade e bondade. Por trás da sedução, também pode se ocultar a traiçoeira armadilha de terrível e travestida fealdade.
O ponto que interessa à verdade psíquica —
objeto da psicanálise — não se refere ao fato sensorial, mas ao que não é
observado através dessa categoria. Um exemplo é o sentimento de fealdade não se
referir só à aparência física, mas à experiência subjetiva e mental, ao mundo
interior não sensorial. Ricardo III era feio por fora e por dentro, as duas
dimensões se nutriam. Bolsonaro não teve o mesmo infeliz destino anatômico
dele, mas carrega equivalente feiura mental, uma deformação de caráter que o
anima — ao modo do duque de Gloucester — a ter ódio de todos os que não
integram seu séquito.
Suas ameaças à democracia e a maneira
tosca, simplista e violenta de pensar e governar fazem com que pelo menos 70%
dos brasileiros tenham vontade de latir ferozmente quando ele passa ou aparece
— não por suas feições, mas pelo horrível caráter. O ódio contamina. O Brasil
ficou muito feio. O psicanalista W.R. Bion disse certa vez não ser observada a
origem psicológica dos sofrimentos sociais. Estava na direção certa, se
pensarmos — além do mais — não apenas em líderes psicopáticos, como Bolsonaro,
Trump ou Putin, mas na massa iludida que ainda os apoia, em condições
econômicas críticas causadas por avidez, negação das injustiças sociais e
egoísmo das elites políticas e econômicas.
A inconsistência de Bolsonaro na capacidade
de liderar o conduz à imitação e à alucinação. Ele delira ao desejar repetir
Donald Trump e os episódios de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio. Em seu mundo
interno oco, vagueiam espectros da ditadura e torturadores que são seus
exemplos. Vazio, ele odeia a cultura e as artes. Egoísta e autocrático, deplora
a democracia e o humanismo. Inveja quem tem mais amplitude mental, cultural e
política. Procura de forma desesperada se superar com sarcasmo, incontinências
verbais e emocionais de alta arrogância e prepotência.
A heroica resistência da sociedade
brasileira e de suas instituições tem impedido até agora que a fealdade de
Bolsonaro — apoiada por um Congresso rendido por interesses mesquinhos e por
ambíguas Forças Armadas — se converta, ainda mais, da alucinação para o
concreto, em atos de opressão sanguinária e totalitária. Que a cortina se feche
sobre o palco e retire a tempo esse feio e cruel personagem. Os cães ladram,
mas a carruagem não passará. Agora será o verão da nossa alegria.
*Paulo Sternick é psicanalista
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