domingo, 14 de agosto de 2022

Paulo Sternick* - O verão da nossa alegria

O Globo

A inconsistência de Bolsonaro na capacidade de liderar o conduz à imitação e à alucinação. Ele delira ao desejar repetir Trump e os episódios no Capitólio

Analogias entre Bolsonaro e Ricardo III — o tenebroso personagem de Shakespeare — costumam ater-se ao caráter perverso dos tiranos, à maldade, traição e torpeza, à hipócrita desfaçatez com que manipulam aliados e transformam adversários em inimigos. Porém, contido por uma democracia que ataca, mas não consegue enfraquecer, Bolsonaro ainda não atingiu — exceto pelo excedente de mortes causadas por descaso na pandemia — o grau de violência sanguinária e vingativa do duque de Gloucester. Mas a cortina ainda não se fechou.

Além das semelhanças, a diferença entre ambos também pode ser reveladora. Bolsonaro não sofreu o destino da anatomia que fez de Ricardo III um ser deformado, rejeitado pela mãe. Ao lamentar ser obra de natureza enganadora, sentia-se lançado ao mundo antes do tempo: manco, corcunda, disforme, inacabado, de tal modo imperfeito, quase um monstro diante de quem os cães latiam quando passava. Ricardo III decidiu ser um vilão da pior espécie.

Incapaz de suportar os tempos de paz, e de ser um amante que goza os dias suaves, armou tramas e conspirações. Sua má sorte física, porém, nem é causa, nem um álibi. Pois o estigma que igualou o feio ao mau foi desconstruído ao longo da História — e expresso em personagens da literatura e do cinema. Inversamente, a beleza jamais foi garantia — exceto para os tolos — de superioridade e bondade. Por trás da sedução, também pode se ocultar a traiçoeira armadilha de terrível e travestida fealdade.

O ponto que interessa à verdade psíquica — objeto da psicanálise — não se refere ao fato sensorial, mas ao que não é observado através dessa categoria. Um exemplo é o sentimento de fealdade não se referir só à aparência física, mas à experiência subjetiva e mental, ao mundo interior não sensorial. Ricardo III era feio por fora e por dentro, as duas dimensões se nutriam. Bolsonaro não teve o mesmo infeliz destino anatômico dele, mas carrega equivalente feiura mental, uma deformação de caráter que o anima — ao modo do duque de Gloucester — a ter ódio de todos os que não integram seu séquito.

Suas ameaças à democracia e a maneira tosca, simplista e violenta de pensar e governar fazem com que pelo menos 70% dos brasileiros tenham vontade de latir ferozmente quando ele passa ou aparece — não por suas feições, mas pelo horrível caráter. O ódio contamina. O Brasil ficou muito feio. O psicanalista W.R. Bion disse certa vez não ser observada a origem psicológica dos sofrimentos sociais. Estava na direção certa, se pensarmos — além do mais — não apenas em líderes psicopáticos, como Bolsonaro, Trump ou Putin, mas na massa iludida que ainda os apoia, em condições econômicas críticas causadas por avidez, negação das injustiças sociais e egoísmo das elites políticas e econômicas.

A inconsistência de Bolsonaro na capacidade de liderar o conduz à imitação e à alucinação. Ele delira ao desejar repetir Donald Trump e os episódios de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio. Em seu mundo interno oco, vagueiam espectros da ditadura e torturadores que são seus exemplos. Vazio, ele odeia a cultura e as artes. Egoísta e autocrático, deplora a democracia e o humanismo. Inveja quem tem mais amplitude mental, cultural e política. Procura de forma desesperada se superar com sarcasmo, incontinências verbais e emocionais de alta arrogância e prepotência.

A heroica resistência da sociedade brasileira e de suas instituições tem impedido até agora que a fealdade de Bolsonaro — apoiada por um Congresso rendido por interesses mesquinhos e por ambíguas Forças Armadas — se converta, ainda mais, da alucinação para o concreto, em atos de opressão sanguinária e totalitária. Que a cortina se feche sobre o palco e retire a tempo esse feio e cruel personagem. Os cães ladram, mas a carruagem não passará. Agora será o verão da nossa alegria.

*Paulo Sternick é psicanalista

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