O Estado de S. Paulo
Sem a razão e o esforço necessários para
nos levar adiante, aumenta o distanciamento entre sonho e realidade, entre a
intenção e o gesto.
Os atos de 11 de agosto de apoio às cartas
em defesa do Estado Democrático de Direito sempre e da integridade
do processo eleitoral brasileiro foram da maior importância. Mostraram ao
resto do mundo e a nós mesmos que o Brasil tem uma sociedade civil capaz de
superar divergências e se expressar quando valores fundamentais que compartilha
merecem – ou precisam – ser defendidos. Mas há um longo e árduo caminho à
frente.
“Tudo o que o Brasil não precisa, para a
construção de seu futuro, é de mais intolerância, radicalismo e instabilidade.
Para nos libertarmos dos fantasmas do passado, superarmos definitivamente a
presente crise e descortinarmos novos horizontes é central a construção de um
novo ambiente político que privilegie o diálogo, a serenidade, a experiência, a
competência, o respeito à diversidade e o compromisso com o País.”
O parágrafo acima é extraído de documento intitulado Por um polo democrático e reformista, divulgado em maio de 2018, em que a eleição daquele ano era referida “talvez como a mais complexa e indecifrável de todo o período da redemocratização”. A eleição de 2022 e suas consequências não se anunciam menos complexas.
Todos os brasileiros e brasileiras são a
favor do desenvolvimento econômico e social do País, da redução da pobreza e
desigualdade. Todos, sem exceção, sabem que isso exige crescimento econômico
sustentado, com baixa inflação, por décadas. Nem todos, no entanto, têm
presente um fato irretorquível: esses objetivos têm como condição sine qua
non aumentos sustentados de produtividade e de eficiência, tanto na
economia quanto no setor público. A aceitação dessa evidência não
significa o apequenamento da Política, dos valores mais altos da vida em
sociedade. Ao contrário, a verdadeira política só tem a ganhar, tanto na visão
tradicional de competição democrática pelo exercício do poder como na visão
republicana do cidadão que não se limita a votar de tempos em tempos, mas que
acompanha com mais decidida atenção as ações dos eleitos como os representantes
do povo.
Todos reconhecemos a necessidade política
de manter sempre acesa a chama da esperança em dias melhores para todos. Dito
isso, o Brasil vem demonstrando ao longo de sua história que a ousadia
necessária para manter viva essa chama não é a ousadia das promessas e
bravatas. É, diferentemente, a ousadia da busca da eficiência nas várias ações
governamentais; é a ousadia que permite reduzir – não aumentar – os riscos e as
incertezas que afetam os investimentos dos quais depende o crescimento futuro;
é a ousadia da responsabilidade, da persistência-com-propósito.
Quando não há discordâncias de vulto sobre
os grandes objetivos a alcançar, o foco da discussão deveria estar sobre as
formas mais eficazes de alcançá-los. Sabendo que há falsos dilemas a evitar e
difíceis escolhas a fazer. Evitando o messianismo salvacionista (dos que se consideram
enviados por Deus em missão na Terra); o voluntarismo explícito dos que
acreditam que tudo é alcançável se houver vontade política; e o puro exercício
de autoridade como solução simples para problemas tão complexos como os do
Brasil de hoje.
Em entrevista publicada na semana passada (O
Globo, 9/8), o economista Daron Acemoglu – coautor de Por que as nações
fracassam (2012) e de O corredor estreito (2020) – nota o muito
que há por fazer para entender melhor o surgimento, em vários países do mundo,
dos populismos de direita e das respostas simétricas – e igualmente nocivas – a
ele. “Não existe nada inevitável sobre a democracia”, afirma. “Haverá
retrocessos.” E nota que “as futuras ameaças à democracia não vestem uniforme
militar. Elas virão de pessoas ativas nas redes”. Virão também, por óbvio, do
número de seguidores que consigam mobilizar. Esses ativistas das redes sociais
têm sido particularmente bem-sucedidos no Brasil, como em vários países do
mundo.
Umberto Eco recuperou o discurso feito em
novembro de 1938, às vésperas da 2.ª Guerra Mundial, por um Roosevelt acossado
por nacional-populistas-isolacionistas e seus milhões de seguidores: “Ouso
dizer que, se a democracia americana parasse de progredir como uma força viva,
buscando dia e noite melhorar por meios pacíficos as condições de nossos
cidadãos, a força do fascismo cresceria em nosso país”. Eco sugere que este
seja o mote: “Não esqueçam”.
O Atroz Encanto de Ser Argentino é o
título de um belo livro de Marcos Aguinis, cuja edição brasileira tem prefácio
que tive o prazer de escrever. O livro, ainda que sofrido em algumas partes,
expressa confiança – a mesma que tenho eu no Brasil – nas reservas morais,
culturais, técnicas e criativas que o país conserva e com as quais poderá,
segundo o autor, ser “criado ou recriado o clima de racionalidade, esforço e
esperança que nos levará adiante”. Vale notar as duas palavras que precedem a
palavra esperança, chave do discurso político. Sem a razão e o esforço
necessários, aumenta o distanciamento entre o sonho e a realidade, entre a
aspiração e a realização, entre a intenção e o gesto. E entre estes, como diria
o poeta, cai a sombra.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.
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