domingo, 14 de agosto de 2022

Marcos Lisboa* - Tambores e fumaça

Folha de S. Paulo

O processo eleitoral promete muita ameaça e pouco debate

disputa eleitoral se anuncia como confronto embalado por intimidações e tambores. Existe o receio de que os disparates não fiquem restritos às palavras de ordem.

Nos dias que se seguiram ao 7 de Setembro do ano passado, ocorreram ameaças de bloqueios de estrada e esboços de manifestações violentas. Houve quem temesse o descontrole. Naquele momento, o STF (Supremo Tribunal Federal) declarou, com sua autoridade constitucional, que não compactuaria com a ruptura. Foi eficaz.

Desde então, o Judiciário tem sido conivente com a ruptura de práticas institucionais que garantem a concorrência eleitoral. Parlamentares aprovam gastos públicos insustentáveis para beneficiar suas paróquias nos meses que antecedem as eleições.

Em países desenvolvidos, as Forças Armadas ficam à margem da deliberação dos processos eleitorais. Elas têm acesso a instrumentos de coerção e por isso devem se submeter aos poderes civis, que foram eleitos. Militares são pagos para proteger fronteiras, não para se ocupar de urnas eletrônicas.

O mesmo vale para forças policiais. Elas são zeladoras do bem comum, não seus síndicos. Cabe-lhes obedecer às ordens, não ditá-las, muito menos delimitar a escolha de seus chefes, com propõe projeto de lei no Congresso.

O STF de setembro de 2021 não se parece com o STF dos últimos meses. O orçamento secreto continua secreto. Os fundos eleitoral e partidário permanecem instrumentos de poucos mandantes. As denúncias de malfeitos com verbas públicas não têm maiores consequências. E, em meio a todas as dificuldades econômicas que vive a população, o STF se autoconcede um reajuste salarial de dois dígitos.

O Legislativo de 2022, por sua vez, continua sua obra de usurpar funções do Executivo. Congressistas determinam a servidores que executem gastos para atender a interesses paroquiais, pois são "emendas impositivas" ou parte do acordo do que cabe às emendas do relator. A PEC Kamikaze atropelou o rito do Legislativo e princípios básicos do processo eleitoral.

As campanhas pouco discutem como enfrentar esses temas. Governo e parlamentares são sócios das verbas que privilegiam os congressistas e aliados das cúpulas partidárias em detrimento dos demais. O governo descobriu o "teto retrátil". A oposição com mandato igualmente se beneficia das emendas e do fundo eleitoral.

Existes diferenças relevantes. Os apoiadores do governo preocupam pela brutalidade e reiteradas ameaças às instituições. A principal oposição, por outro lado, aceita as regras elementares da democracia. Mas há também semelhanças perturbadoras.

As seguidas intervenções nas agências reguladoras começaram há duas décadas. Houve a ameaça de expulsão de um jornalista estrangeiro e os pedidos de demissão de analistas do setor privado que criticavam o governo.

Refugiados cubanos pediram exílio, mas foram deportados. Houve complacência com regimes autoritários, como o da Venezuela. O valor fundamental da democracia, que agora se utiliza para congregar a oposição, não era tão relevante naquele momento.

A troca de favores com os grupos de interesse e o fortalecimento dos partidos do centrão passaram a liderar a política há mais de uma década. A Lava Jato atropelou o Estado de Direito. O mesmo fez, contudo, a corrupção disseminada que a antecedeu.

FHC transmitiu uma faixa presidencial e um legado de instituições de Estado, com procedimentos para administrar conflitos, como a Lei de Responsabilidade Fiscal ou as agências reguladoras.

Seus sucessores, contudo, legaram uma economia corroída pela distribuição de subsídios e de favores ao setor privado. Houve uma paulatina fragilização dos procedimentos de controles cruzados da política pública. No começo da década passada, o governo se utilizou de inúmeros artifícios para mascarar as suas contas e promover gastos insustentáveis.

O presidente aparenta preferir não participar de debates. O mesmo ocorre com seu oponente. Ambos defendem medidas similares em diversos temas, como no controle de preços dos combustíveis. Os partidos governistas e da oposição são cúmplices na banalização das emendas à Constituição.

Tudo indica que a economia continuará estagnada nos próximos anos. As distorções microeconômicas, decorrentes de intervenções públicas mal desenhadas, prejudicam o aumento da produtividade e da renda. O descontrole fiscal foi camuflado pela inflação elevada, talvez a forma mais perversa de ajustar as contas públicas.

A evidência aponta que parte relevante da pobreza de muitos países decorre do desenho e da gestão das políticas sociais e da proteção de empresas ineficientes. Vale ler o livro "Making Social Spending Work", de Peter Lindert, e o artigo "The Facts of Economic Growth", de Chad Jones. No entanto, a campanha avança como se bastassem o voluntarismo e a intenção para superar nossos problemas.

A política importa, mas a técnica também. O detalhamento da gestão pública, seja no desenho de programas de transferência de renda, seja na complexa relação com o setor privado, requer cuidado técnico, governança e análise da evidência. Intervenções tecnicamente mal concebidas têm efeitos colaterais inversos aos pretendidos.

O Estado de Direito se fortalece com a garantia ao contraditório e o sistema de freios e contrapesos para a gestão pública. Não se tratam de temas abstratos. Eles se desdobram nas práticas do governo em países desenvolvidos, como a não retaliação da imprensa que o critica, por mais injusta que seja, e o não favorecimento daquela que o apoia.

As democracias maduras construíram mecanismos que limitam a discricionaridade da gestão pública para favorecer grupos de interesse pelo receio de corrupção. Existe outro risco. Políticas baseadas em subsídios muitas vezes fracassam em seus objetivos. Entretanto, elas criam castas que se beneficiam desses privilégios e que se entrincheiram para evitar sua remoção (Mancur Olson, "The Logic of Collective Action").

Gestores, públicos e privados, costumam esconder seus fracassos ou malfeitos. Por vezes, adotam medidas oportunistas, com benefícios imediatos em troca de custos bem mais altos no futuro. Daí a importância de uma governança, incluindo agências reguladoras, com mandato e alçadas, que garanta a transparência dos procedimentos e a avaliação dos resultados.

Nas últimas duas décadas, fomos na contramão dessa agenda e assistimos à fragilização das regras e das instituições de controle. O resultado foi a maior captura da política pública por grupos de interesse, tornando, por exemplo, ainda mais complexo o sistema tributário e a multiplicidade de benefícios concedidos.

O discurso eleitoral se omite sobre nossos problemas, inclusive muitos que fragilizam as práticas e instituições da democracia. Haverá compromissos públicos para garantir que desta vez será diferente, ou teremos apenas mais do mesmo que nos trouxe até aqui?

*Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

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