O Globo
Fatores externos condicionam o governo. Em
tempos de bonança internacional, o governante tem mais espaço para seguir de
forma independente
Recentemente, eu ouvi de alguém que eu
respeito muito a tese de que, apesar de Lula e Bolsonaro serem ambos ruins,
seria mais fácil limitar o poder deste do que daquele. Mas isso é verdade?
Em princípio, a ideia é razoável. De fato,
instituições como a mídia, a sociedade civil, os entes federados e o Supremo
Tribunal Federal colocaram limites ao radicalismo de Bolsonaro. Ainda que de
forma imperfeita, as instituições impediram um golpe, que é o que muitos
apostavam que viria no governo do Capitão.
Os analistas mais atentos, contudo, sabiam
que a probabilidade de golpe era baixa. O best-seller “Como as Democracias Morrem”,
dos cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, explica que o risco
para as democracias modernas é uma deterioração gradual das instituições.
O caso clássico é o chavismo. Como já relatado nesta coluna (“Bolsochavismo”, 30/07/2022), uma das características do chavismo foi cumprir requisitos formais da legislação para violar o espírito da lei.
Um exemplo é a instrumentalização do
Supremo Tribunal venezuelano. Por lá, os ministros do Supremo têm mandato de 12
anos. Após o chavismo perder as eleições congressuais, em 2015, coordenou-se a
renúncia de todos os ministros do Supremo.
Com isso, antes da oposição assumir seus
mandatos, nomearam novos ministros, impedindo a oposição de nomear pessoas não
alinhadas com o regime.
Não há dúvida de que houve uma deterioração
institucional recente no Brasil. Dentre outras coisas, o governo Bolsonaro
interferiu na Polícia Federal, limitou a ação de órgãos de controle à corrupção
e interveio em órgãos técnicos de saúde e meio ambiente. Afora isso, esgarçou a
relação com os outros Poderes, tensionando a democracia brasileira.
Essa deterioração se reflete nos índices
que tentam medir a qualidade da democracia no mundo, em que o Brasil caiu de
posição.
Se as instituições, ainda que cambaleantes,
resistiram, o novo Congresso eleito no último domingo põe em dúvida que isso
ocorra no futuro. O presidente conseguiu uma maioria forte o suficiente para
aprovar mudanças radicais, inclusive o impeachment de ministros do STF. O
Congresso que assume em janeiro deve oferecer pouca resistência a Bolsonaro.
E se Lula ganhar, quais serão as pressões
sobre seu governo? Num trabalho recente, o economista político Daniele Girardi
mostra que, em eleições apertadas, há uma reação negativa do mercado quando o
candidato de esquerda ganha. É o que se chama de “disciplina de mercado”.
Essa reação ajuda a limitar a capacidade do
presidente em promover mudanças radicais. Como demonstra empiricamente a
cientista política brasileira Daniela Campello no seu livro “The Politics of
Market Discipline in Latin America” (“A política da disciplina de mercado na
América Latina”, Cambridge University Press), a disciplina de mercado opera de
forma mais intensa em tempos de crise econômica.
Fatores externos, como o preço das
commodities e os juros internacionais, condicionam o governo. Em tempos de
bonança internacional, o governante tem mais espaço para seguir de forma
independente. Tempos de crise, ao contrário, tendem a forçar a moderação dos
governantes de esquerda.
Intuitivamente, isso explicaria por que
Lula colocou o tucano Henrique Meirelles no Banco Central enquanto Dilma
aprofundou a Nova Matriz Econômica, que eventualmente resultaria na grande recessão
de 2014-16. O primeiro assumiu após crises internacionais e alta inflação
provocada por sua própria eleição, enquanto a segunda assumiria o governo no
pico do superciclo de commodities, que garantiu abundância de moeda estrangeira
no Brasil.
Quem quer que assuma ano que vem terá de
enfrentar um cenário internacional de juros crescentes nos países ricos e com
possibilidade real de recessão global. A evidência empírica disponível indica
que, caso se confirme essa previsão, haverá um constrangimento real ao poder do
candidato de esquerda.
A isso, soma-se o fato de que o Congresso
vai ser majoritariamente de direita, limitando ainda mais a sua ação.
O objetivo de limitar o poder presidencial
é legítimo e está na base de boa parte das democracias liberais. Faz sentido
votar no candidato sujeito aos maiores limites externos a seu poder. Mas, no
equilíbrio de forças atual, a tese mencionada no começo do artigo não parece se
sustentar. Na realidade, o contrário parece ser verdade.
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