O Globo
O Brasil vota, e o mundo olha para o
Brasil. Termos chegado até aqui pode ser considerado extraordinário
A live presidencial da última quinta-feira foi espartana — na cenografia, esclareça-se, porque no linguajar Jair se manteve fiel a Jair. Tudo dentro dos conformes da legislação eleitoral, que proíbe ao candidato incumbente o uso da máquina do Estado e de gabinetes oficiais para sua campanha. Sentado a uma mesa espaçosa, Jair Bolsonaro tinha esticada, ao fundo, apenas uma bandeira do Brasil. De resto, paredes vazias. Vestia uma camiseta da Seleção Brasileira cheirando a Neymar. Pareceu estar mais sozinho na improvisada saleta de campanha que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em seu bunker de guerra. E estava. Horas depois, ao longo do aguardado debate na TV Globo, também pareceu perdido. De pouco lhe serviu chegar ao estúdio amparado pela guarda pretoriana mais ideológica de sua bolha, pois continuou parecendo aturdido e só. Tampouco funcionou a dobradinha com o candidato do PTB, elencado para incensá-lo: o ventríloquo-vigarista Padre Kelmon só serviu para enxovalhar o debate, virar meme e realçar a decadência público-privada do chefe da nação.
Hoje, 2 de outubro, o Brasil vota, e o
mundo olha para o Brasil. Termos chegado até aqui pode ser considerado
extraordinário e merece ser celebrado. Estarão em choque valores sociais com
significados cada vez menos unânimes: liberdade e igualdade, justiça e perdão,
identidade e cidadania. Em edição recente sobre a necessidade de os Estados
Unidos voltarem a valorizar a normalidade da vida cívica após dois anos e meio
de Covid-19, a revista New Yorker recorreu ao austero filósofo Isaiah Berlin
(*) para argumentar que simplesmente não podemos ter tudo.
— Colisões são um elemento intrínseco e
irremovível da vida humana — sustentava Berlin.
E, nesse pluralismo de valores, alguns
meios acabam por exigir o sacrifício de outros. A busca está em “manter o
precário equilíbrio capaz de evitar a ocorrência de situações desesperadas e de
escolhas intoleráveis — esse deve ser o primeiro requisito para uma sociedade
decente”.
Hoje, 2 de outubro, temos passe livre para
votar. Dia momentoso. Se quiser começar a reencontrar alguma normalidade cívica
após quatro anos de destruição intencional, negação da História, desdém pela
cultura, valorização da ignorância e da força, o Brasil não pode ficar em casa.
De título de eleitor e destino nacional em mãos, vamos ao encontro do futuro. E
não vale considerar-se derrotado caso a insanidade da Presidência Jair
Bolsonaro não seja cancelada já no primeiro turno, diria Isaiah Berlin. Uma
sociedade mais decente depende de nós.
Sendo a democracia republicana uma obra
compartilhada pela imaginação de talentos, interesses, vozes e gerações
múltiplas, ela é uma obra inacabada, quase um organismo vivo, não um congelado
de ideias. Ela talvez seja o maior empreendimento humano quando apoiada por uma
cidadania determinada a participar, em vez de conformada em ser governada. É um
contrato social permanente que, uma vez rompido, não se refaz facilmente.
Albert Camus dizia ser incapaz de amar a
humanidade como um todo, exceto num sentido bastante abstrato e genérico. Mas
esclarecia amar alguns de seus semelhantes (mortos ou vivos) com tamanha
admiração e força que estava sempre disposto a descobrir no outro algo que o
assemelhasse a esses poucos. Dessa forma, ampliava seus círculos de esperança.
— A liberdade nada mais é do que a
possibilidade de ser melhor —escreveu.
E, quando ela se distancia de algum lugar,
nunca é a última a sair —a justiça também se exila. Como a justiça só consegue
ser aplicada quando os direitos são reconhecidos, e como não existe direito sem
a expressão desse direito, a liberdade de imprensa faz parte do pacote em
votação neste 2 de outubro. Domingo momentoso.
(*) No inverno europeu de 1944, em plena tensão pré-invasão da Normandia, Winston Churchill soube que Irving Berlin estava na Inglaterra. Confundiu o nome do grande músico americano com o do acadêmico Isaiah Berlin e convidou-o para almoçar. Conversa finésima até Churchill indagar de que obra o convidado tinha mais orgulho. “White Christmas”, citou o autor da célebre núsica que levara o Oscar de Melhor Canção dois anos antes. Não se tem notícia de como prosseguiu o almoço.
Um comentário:
Não sabia da gafe do Churchill.
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