domingo, 2 de outubro de 2022

Míriam Leitão - O que nos trouxe até o dia de hoje

O Globo

A resistência nos trouxe até o dia do voto. Cada um que resistiu em sua área fez parte da grande tarefa de proteger a democracia contra o risco autoritário

Muitos nos trouxeram até o momento de fazer a escolha nacional para presidente da República. Os dias dos últimos quatro anos foram árduos e ásperos. O brasileiro chega às urnas com um misto de sentimentos. Há alívio, esperança, tristeza, medo, cansaço, raiva. O caminho da democracia sempre foi acidentado no Brasil, mas depois de 1988 não esperávamos mais viver os sustos dos últimos anos. O constituinte não nos preparou para viver o tempo extremo de um presidente com declarados objetivos antidemocráticos.

A democracia pareceu vulnerável várias vezes neste mandato. Tivemos iminência de ruptura, golpismo de líderes militares, o presidente confrontando diariamente o Judiciário e ofendendo cláusulas pétreas como o federalismo. Com vulgaridade, o presidente rasgou a liturgia do cargo. No momento da nossa maior dor, quando o país enterrava em covas sequenciais até quatro mil mortos num dia, pessoas sufocavam sem oxigênio em plena Amazônia, estávamos acuados diante do inimigo letal, o presidente riu da dor coletiva. Não houve trégua, não tivemos paz.

Esse presidente com a sua coleção inédita de erros chega ao dia da eleição em clara desvantagem em relação a Lula, o líder das pesquisas. É a primeira vez que isso acontece com um presidente disputando a reeleição. Por outro lado, um terço dos eleitores manifesta sólida decisão de mantê-lo no cargo. O trabalho massivo que ele fez reteve ao seu lado uma proporção muito alta de seguidores.

Duelaram duas visões sobre os fatos correntes. A maioria avaliava que havia riscos institucionais e era preciso confrontar as ameaças do presidente. Um grupo sustentava que o Brasil tem instituições fortes e ele não prevaleceria. Se todos apostassem nessa segunda visão, certamente não estaríamos falando das eleições de hoje. Foi exatamente os que temeram o pior que nos trouxeram até aqui. É a antiga história da “eterna vigilância”. Como se diz em inglês, não se pode take it for granted. O risco de tomar como garantido um patrimônio que está sendo atacado eleva o perigo de perdê-lo.

Os que nos trouxeram até aqui foram os que entenderam que era preciso resistir. Muitas vezes, notas pareceram inócuas e discursos soaram inúteis, perto da virulência com que o presidente ofendia jornalistas, atacava ministros do Supremo, estimulava seus seguidores ao assédio físico e à difusão de mentiras e mensagens de ódio. Tantas vezes a urna, como símbolo, foi atacada. Tantas vezes os comandantes militares se deixaram usar como parte da manobra de amedrontar o país. Tão insistentemente certos militares, em posições estratégicas, alimentaram a dúvida sobre a segurança das urnas. E por que o fizeram? Por que os líderes militares não deram ao país o conforto de atos e palavras que dissipassem o medo que o presidente alimentava? Eles terão que responder por mais esse erro diante da História. A nossa República tem uma história ferida por golpes e conspirações militares. Nada recomenda baixar a guarda.

A democracia não é apenas a formalidade dos ritos. Ela é viva. Nos últimos anos, a floresta foi atacada, Bruno e Dom morreram, indígenas e ambientalistas morreram. O que eles defendiam eram a floresta e a democracia. A cultura foi estrangulada. Os artistas que a mantiveram viva defendiam as artes e a liberdade. A educação foi relegada a um grotesco espetáculo de comércio de bíblias e barras de ouro. Quem resistiu numa sala de aula salvava o futuro e a democracia. A saúde foi testada no seu limite pela pandemia e pela sabotagem presidencial. Os que a defenderam nos hospitais ou nos laboratórios que produziram vacinas defendiam o direito de existir. E a democracia.

O autoritarismo é antes de tudo uma licença para outros crimes. Quem viveu uma ditadura sabe. Por isso, Doutor Ulysses falou em ódio e nojo. Naqueles 21 anos, no rastro da liberdade suprimida, foram cometidos crimes em diversas áreas. E a dor sempre recai mais pesada sobre alguns. Hoje, os brasileiros vão às urnas e as pesquisas mostram que o presidente perde fortemente em alguns segmentos. Para as mulheres, os negros, os pobres, os jovens e os nordestinos, ele não. Houve uma teia forte e teimosa reagindo a cada absurdo diário do presidente durante quatro anos. O que nos trouxe até o dia do voto foi a resistência.

 

3 comentários:

Anônimo disse...

O passado de Lula é duvidoso, mas o futuro com Bolsonaro será ainda mais TENEBROSO que seus primeiros 45 meses de DESgoverno!

Anônimo disse...

Pode já ir se acostumando seus idiotas Bolsonaro vai ganhar o primeiro turno 50% das urnas apuradas institutos de pesquisa jornalismo tudo vendido tudo panfletário de esquerda cair na esparrela bem feito o povo não vai perdoar vocês
Cínicos , covardes , traidores da Pátria que usam a suas posições para desinformar e induzir o eleitor ao erro
A sociedade vai dar o troco , pode esperar!
Presidente reeleito

ADEMAR AMANCIO disse...

Análise certeira da colunista.