Apesar disso, não se sabe se esse desejo se realizará. Em caso de
não, a razão não será que o desejo oposto prevalecerá arbitrariamente e sim que,
em termos de preferências e intenções de voto, as duas principais partes em que
essa ampla maioria se divide querem que a eleição acabe logo, mas só se for com
a vitória do seu candidato. Nenhum eleitor de Bolsonaro e nem todos os das demais
candidaturas votarão em Lula, o líder das pesquisas, para que o desejo da
antecipação do desfecho se realize. Ele pode se diluir no nível de polarização real
entre as preferências dos eleitores. Aí está ela, a democracia.
O momento importa. Aliás, ele é que decide, não interpretações e lições do passado, nem aspirações e projeções sobre o futuro. Luiz Sergio Henriques, em inspirado artigo (“Match point eleitoral”, publicado na página Esquerda Democrática no facebook em 30.09) usa a fabulação de um filme de Woody Allen (“uma bola de tênis a oscilar na parte superior da rede, podendo cair de um lado ou de outro, decidindo o destino das pessoas”) para ilustrar como é incerto o presente de que falamos. Seu sentido só se deixará desvendar pelo correr do tempo. Até as próximas 24 horas, falar do futuro que sairá das urnas será diletante se não se levar em conta a incerteza soberana do presente. E como o presente do qual estamos falando está carregadíssimo de passado - inclusive porque passados foram evocados a todo instante pelas campanhas – também seria diletante colocar o passado entre parênteses. Nessas circunstâncias, imaginar o futuro é um desafio ao pessimismo da razão e ignorar o peso do passado é esgotar as energias da boa vontade. Melhor seria, talvez, apenas aguardar as 24 horas, mas isso também não é possível, pois amanhã é um dia de decisão. Como ficarmos neutros diante da urna?
O mesmo Luiz Sergio prossegue com uma reflexão crucial para os
democratas que defendem acabar logo: “manda o realismo político
pensar na possibilidade de que a bola de tênis caia do outro lado”,
da qual decorre uma pergunta: “se, no domingo, os eleitores indicarem o caminho do segundo
turno, como enfrentá-lo de modo positivo, sereno e aberto, sem desabar perante
o novo contexto?”.
Por mais que enxerguemos riscos na
continuidade do processo por mais quatro semanas, a decisão do eleitor por um
segundo turno já poderá adiar, por outro lado, o momento de enfrentamento
objetivo da mais que provável tentativa da extrema-direita de, ao fim e ao
cabo, haja ou não segundo turno, tentar deslegitimar os resultados e bloquear o
cumprimento da decisão popular. Quem tem mais a ganhar com o tempo alargado? Bolsonaro
terá mais espaço entre amanhã e segunda-feira, ou daqui a quatro semanas?
Contará com apoio, companhia e indulgência para promover arruaças durante a
campanha do segundo turno em grau maior do que pode ter tido durante a etapa da
campanha que se encerra hoje?
Ninguém tem acesso aos
segredos do futuro, mas uma possibilidade de projeção pode se ancorar no que
temos assistido acontecer na última semana da campanha para o primeiro turno. A
de Bolsonaro perde substância, retrocede aos métodos da sua bolha e assim
expõe-se a crescente isolamento político e social. Campanhas da terceira via
sustentam-se, dentro da margem de erro - a de Simone Tebet com esperança de
alguma alta, a de Ciro Gomes com a de pouca baixa – enquanto a de Lula amplia-se
significativamente já em clima de segundo turno, mas alimenta a expectativa de
vencer no primeiro.
Cresce, nessa semana, uma
onda de frente democrática, envolvendo a principal candidatura, dando-lhe uma amplitude
potencial - política, social e institucional -
que durante um ano e meio não havia conseguido ter, como mostra a estabilidade
de seus índices de intenção de voto desde então até aqui, apesar do positivo e ousado
passo político que foi a composição precoce de uma chapa plural. Se houvesse
como Lula, seu partido e aliados próximos vencerem sozinhos a eleição em
primeiro turno, anexando apenas uma personalidade política respeitável do
centro democrático, tal condição já se teria mostrado nas intenções de voto ao
longo de tantos meses. Ocasiões não faltaram em que Bolsonaro emparedou a
sociedade e o país com um ânimo de chantagem digno de um sequestrador. A noção
de perigo nunca deixou de estar presente e ser difusa, mas, ainda assim, o
eleitorado brasileiro não se inclinava, majoritariamente, a chamar Lula já, para
salvar a República. Essa hipótese sempre foi a mais provável para um futuro que,
no entanto, até poucos dias não havia chegado e ainda na véspera da eleição não
se sabe se chegou, tanto que a hipótese de irmos ao segundo turno também está
de pé.
Mesmo que a hora já tenha
chegado, com as adesões recentes nos mundos da política, dos juristas, da
cultura, da imprensa, a impressão confortante é de que a onda só começa e ainda
tem muito a crescer. Volta-me à mente o texto de Luiz Sergio Henriques: “Não
se trata só de ganhar eleições, mas de reconstruir a esfera pública. Será
possível ter uma normal dialética
democrática com uma extrema-direita capaz de mobilizar, pelo que parece, 30 ou
40% dos eleitores em estado de insubmissão latente?” A
sugestão inequívoca do autor, à qual me associo inteiramente, é a de que esse
consenso resiliente - que ainda abarca mais de um terço do eleitorado a flertar
com um perigo trágico, chancelando um fascistóide - precisa ser corroído, para
que não se estabeleça, como verdade histórica e como realidade política, que
tamanha parcela dos brasileiros não tolera conviver com outra parte do País
real, que é a nossa pátria comum. A se firmar tal narrativa, estaria o Brasil
inviabilizado como nação.
É imperativo recusar essa
tragédia como suposto legado desses anos nefastos em troca de uma vitória
eleitoral. Se ela vier neste próximo domingo, o alívio que representará já não
será nada desprezível, mas não dispensará os vitoriosos de formalizarem um
entendimento interpartidário amplo entre democratas, para além de sua coalizão
eleitoral, conforme sinalizam os apoios plurais que acabam de lhe chegar. Nesse
caso, o terreno do entendimento terá que ser mesmo a composição e orientação
programática do governo, para tornar mais largo e preciso o parco e vago
diálogo da campanha até aqui.
O mesmo imperativo poderá
ser melhor cumprido se ganharmos (uso aqui esse verbo não por acaso) essas
quatro semanas que a instituição da eleição em dois turnos propicia. Se assim
ocorrer, essa frente democrática tende a crescer e se tornar realmente
histórica e divisora de águas, como foi a das Diretas Já. Antes e mais
que uma mesa de negociação do perfil de um governo – assunto entregue ao tempo
político posterior ao da fala do eleitor - estará um entendimento para realizar
uma campanha de frente realmente ampla. No horizonte de uma repaginação da
campanha de Lula e da sua própria persona pública, de modo a ambas irem bem
além do PT e da esquerda, está a desativação das minas antipetistas que impedem
hoje o acesso de candidaturas democráticas ao mundo das intenções de voto em
Bolsonaro. O número de eleitores atuais dessa direita extrema é quase o dobro
daquilo que pesquisas especializadas da ciência política brasileira estimam ser
o eleitorado ideológico do mito.
É a esse quinto do
eleitorado que Bolsonaro pode estar reduzido daqui a um mês, caso haja segundo
turno. Ponto principal: uma acachapante derrota eleitoral tirará Bolsonaro não
apenas do governo, mas da cena política e mesmo do sistema político que ele
tentou destruir. Com isso, a extrema-direita não desaparecerá, uma vez que é
movimento mundial e parece ter chegado aqui para ficar. Mas, privada do mito
que a catapultou ao palco central da política brasileira, terá que buscar outro
mito encarnado ou outro caminho para pregar seus valores, com menos chance de
resultados concretos até 2026. Isso dará às diversas correntes substanciais da
política democrática, além de alívio, mais tempo para, nesse caso, não apenas
montarem um governo democrático como articularem uma oposição democrática.
O país precisa de uma oposição
democrática, um lugar que não pode ser cedido à extrema-direita. A ideia de governo de união nacional é de
difícil compatibilização com essa demanda. Formar governo compete a quem o povo
elegeu e se Lula ganhar a eleição no primeiro turno, sem depender de apoio
político das instituições partidárias e candidaturas do centro democrático (embora
sem dispensar apoios avulsos e votos de seus potenciais eleitores), a missão daquele
“centrinho”, ao contrário da do centrão, é construir a oposição necessária. Havendo segundo turno, essa é pauta em aberto,
mas ainda assim a saúde democrática do país pedirá, em algum momento, uma
oposição comprometida com ela.
Haverá casos e casos. Veja-se, por exemplo, o da candidata Simone
Tebet e do seu partido, o MDB. Por toda a postura moderada e ao mesmo tempo
assertiva que Simone adotou na campanha, sua atitude imediata só poderá ser de
expectativa generosa e disposição a diálogo. Mas para que essa atitude não se
confunda com oportunismo ou “entrismo”, precisará valorizar os votos que tiver
no primeiro turno. Independência política em relação ao futuro governo é esperado
de uma candidata que não condenou – em vez disso, renovou – o programa mais
recente do seu partido, a chamada “ponte para o futuro”. Supõe-se que um diálogo republicano de Lula
com ela e com o MDB tenha de começar por aí.
Já a frente eleitoral ampla
para livrar o Brasil de Bolsonaro já tem seu script consagrado na
sociedade. É exatamente o que já se busca articular, segundo matéria assinada
pelos jornalistas Pedro Venceslau e
Beatriz Bulla (“Grupos já buscam articular ato por frente ampla
contra Bolsonaro em eventual segundo turno”), publicada
pelo Estadão em 27.09.22. Nada de devaneio, uma iniciativa de grupos,
entidades e personalidades com nomes, sobrenomes e inserções sociais
respeitáveis, suprapartidárias e eficazes. É o roteiro de um movimento político
e cívico que pode fazer do Brasil um caso exemplar de como um país liberta-se,
pela política (e com sustentação política maior do que a rejeição dos EUA a
Trump), de um sequestro extremista que tem a mesma natureza dos que hoje
ameaçam algumas das mais consistentes democracias do planeta. Certamente já não
faltam indícios da dimensão internacional do que está em jogo em nosso país,
nessas eleições.
Outubro breve e outubro
largo são duas pistas alternativas pelas quais o sistema político da república
democrática, a sociedade civil e o eleitorado do Brasil poderão despachar o
mito que até aqui vinha fazendo os três de reféns. A decisão sobre por qual das
duas pistas a elite política trafegará é do eleitor, que é o ator do presente
imediato, um presente dado pela fotografa de suas necessidades prementes e de seus
valores, arraigados ou fluidos. Já a escolha da direção objetiva das coisas é
missão da liderança política, que precisa operar num presente contínuo, onde
precisarão estar seus cérebros e seus pés. Nesse presente saturado por experiências
do passado e portador de ambições de futuro, umas e outras mobilizam legítimas
emoções que serão solidamente políticas se forem sempre contidas por um
respeito racional, primordial, do político à importância do momento e de suas
circunstâncias.
Votemos em paz e que a política
nos acompanhe!
*Cientista político e professor da UFBa.
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