domingo, 2 de outubro de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto* - Outubro breve ou largo: duas pistas e uma direção

A maior dúvida restante e que mais tem mobilizado antenas analíticas e vontades políticas sobre o turno eleitoral de amanhã é se ele será único ou se o desfecho da eleição presidencial ocorrerá no último domingo desse outubro candidato a inesquecível.  Pesquisas mostram que a grande maioria dos eleitores (75% segundo o Ipespe, 90% conforme o Genial Quaest) quer que tudo acabe logo no dia 2, por variados motivos, que bem justificariam outro artigo, mas não vêm ao caso agora.

Apesar disso, não se sabe se esse desejo se realizará. Em caso de não, a razão não será que o desejo oposto prevalecerá arbitrariamente e sim que, em termos de preferências e intenções de voto, as duas principais partes em que essa ampla maioria se divide querem que a eleição acabe logo, mas só se for com a vitória do seu candidato. Nenhum eleitor de Bolsonaro e nem todos os das demais candidaturas votarão em Lula, o líder das pesquisas, para que o desejo da antecipação do desfecho se realize. Ele pode se diluir no nível de polarização real entre as preferências dos eleitores. Aí está ela, a democracia. 

O momento importa. Aliás, ele é que decide, não interpretações e lições do passado, nem aspirações e projeções sobre o futuro. Luiz Sergio Henriques, em inspirado artigo (“Match point eleitoral”, publicado na página Esquerda Democrática no facebook em 30.09) usa a fabulação de um filme de Woody Allen (“uma bola de tênis a oscilar na parte superior da rede, podendo cair de um lado ou de outro, decidindo o destino das pessoas”) para ilustrar como é incerto o presente de que falamos. Seu sentido só se deixará desvendar pelo correr do tempo. Até as próximas 24 horas, falar do futuro que sairá das urnas será diletante se não se levar em conta a incerteza soberana do presente. E como o presente do qual estamos falando está carregadíssimo de passado - inclusive porque passados foram evocados a todo instante pelas campanhas – também seria diletante colocar o passado entre parênteses. Nessas circunstâncias, imaginar o futuro é um desafio ao pessimismo da razão e ignorar o peso do passado é esgotar as energias da boa vontade. Melhor seria, talvez, apenas aguardar as 24 horas, mas isso também não é possível, pois amanhã é um dia de decisão. Como ficarmos neutros diante da urna?

O mesmo Luiz Sergio prossegue com uma reflexão crucial para os democratas que defendem acabar logo: “manda o realismo político pensar na possibilidade de que a bola de tênis caia do outro lado”, da qual decorre uma pergunta: “se, no domingo, os eleitores indicarem o caminho do segundo turno, como enfrentá-lo de modo positivo, sereno e aberto, sem desabar perante o novo contexto?”.

Por mais que enxerguemos riscos na continuidade do processo por mais quatro semanas, a decisão do eleitor por um segundo turno já poderá adiar, por outro lado, o momento de enfrentamento objetivo da mais que provável tentativa da extrema-direita de, ao fim e ao cabo, haja ou não segundo turno, tentar deslegitimar os resultados e bloquear o cumprimento da decisão popular. Quem tem mais a ganhar com o tempo alargado? Bolsonaro terá mais espaço entre amanhã e segunda-feira, ou daqui a quatro semanas? Contará com apoio, companhia e indulgência para promover arruaças durante a campanha do segundo turno em grau maior do que pode ter tido durante a etapa da campanha que se encerra hoje?

Ninguém tem acesso aos segredos do futuro, mas uma possibilidade de projeção pode se ancorar no que temos assistido acontecer na última semana da campanha para o primeiro turno. A de Bolsonaro perde substância, retrocede aos métodos da sua bolha e assim expõe-se a crescente isolamento político e social. Campanhas da terceira via sustentam-se, dentro da margem de erro - a de Simone Tebet com esperança de alguma alta, a de Ciro Gomes com a de pouca baixa – enquanto a de Lula amplia-se significativamente já em clima de segundo turno, mas alimenta a expectativa de vencer no primeiro.

Cresce, nessa semana, uma onda de frente democrática, envolvendo a principal candidatura, dando-lhe uma amplitude potencial - política, social e institucional - que durante um ano e meio não havia conseguido ter, como mostra a estabilidade de seus índices de intenção de voto desde então até aqui, apesar do positivo e ousado passo político que foi a composição precoce de uma chapa plural. Se houvesse como Lula, seu partido e aliados próximos vencerem sozinhos a eleição em primeiro turno, anexando apenas uma personalidade política respeitável do centro democrático, tal condição já se teria mostrado nas intenções de voto ao longo de tantos meses. Ocasiões não faltaram em que Bolsonaro emparedou a sociedade e o país com um ânimo de chantagem digno de um sequestrador. A noção de perigo nunca deixou de estar presente e ser difusa, mas, ainda assim, o eleitorado brasileiro não se inclinava, majoritariamente, a chamar Lula já, para salvar a República. Essa hipótese sempre foi a mais provável para um futuro que, no entanto, até poucos dias não havia chegado e ainda na véspera da eleição não se sabe se chegou, tanto que a hipótese de irmos ao segundo turno também está de pé.

Mesmo que a hora já tenha chegado, com as adesões recentes nos mundos da política, dos juristas, da cultura, da imprensa, a impressão confortante é de que a onda só começa e ainda tem muito a crescer. Volta-me à mente o texto de Luiz Sergio Henriques: “Não se trata só de ganhar eleições, mas de reconstruir a esfera pública. Será possível ter uma normal dialética democrática com uma extrema-direita capaz de mobilizar, pelo que parece, 30 ou 40% dos eleitores em estado de insubmissão latente?” A sugestão inequívoca do autor, à qual me associo inteiramente, é a de que esse consenso resiliente - que ainda abarca mais de um terço do eleitorado a flertar com um perigo trágico, chancelando um fascistóide - precisa ser corroído, para que não se estabeleça, como verdade histórica e como realidade política, que tamanha parcela dos brasileiros não tolera conviver com outra parte do País real, que é a nossa pátria comum. A se firmar tal narrativa, estaria o Brasil inviabilizado como nação. 

É imperativo recusar essa tragédia como suposto legado desses anos nefastos em troca de uma vitória eleitoral. Se ela vier neste próximo domingo, o alívio que representará já não será nada desprezível, mas não dispensará os vitoriosos de formalizarem um entendimento interpartidário amplo entre democratas, para além de sua coalizão eleitoral, conforme sinalizam os apoios plurais que acabam de lhe chegar. Nesse caso, o terreno do entendimento terá que ser mesmo a composição e orientação programática do governo, para tornar mais largo e preciso o parco e vago diálogo da campanha até aqui.

O mesmo imperativo poderá ser melhor cumprido se ganharmos (uso aqui esse verbo não por acaso) essas quatro semanas que a instituição da eleição em dois turnos propicia. Se assim ocorrer, essa frente democrática tende a crescer e se tornar realmente histórica e divisora de águas, como foi a das Diretas Já. Antes e mais que uma mesa de negociação do perfil de um governo – assunto entregue ao tempo político posterior ao da fala do eleitor - estará um entendimento para realizar uma campanha de frente realmente ampla. No horizonte de uma repaginação da campanha de Lula e da sua própria persona pública, de modo a ambas irem bem além do PT e da esquerda, está a desativação das minas antipetistas que impedem hoje o acesso de candidaturas democráticas ao mundo das intenções de voto em Bolsonaro. O número de eleitores atuais dessa direita extrema é quase o dobro daquilo que pesquisas especializadas da ciência política brasileira estimam ser o eleitorado ideológico do mito.

É a esse quinto do eleitorado que Bolsonaro pode estar reduzido daqui a um mês, caso haja segundo turno. Ponto principal: uma acachapante derrota eleitoral tirará Bolsonaro não apenas do governo, mas da cena política e mesmo do sistema político que ele tentou destruir. Com isso, a extrema-direita não desaparecerá, uma vez que é movimento mundial e parece ter chegado aqui para ficar. Mas, privada do mito que a catapultou ao palco central da política brasileira, terá que buscar outro mito encarnado ou outro caminho para pregar seus valores, com menos chance de resultados concretos até 2026. Isso dará às diversas correntes substanciais da política democrática, além de alívio, mais tempo para, nesse caso, não apenas montarem um governo democrático como articularem uma oposição democrática. 

O país precisa de uma oposição democrática, um lugar que não pode ser cedido à extrema-direita.  A ideia de governo de união nacional é de difícil compatibilização com essa demanda. Formar governo compete a quem o povo elegeu e se Lula ganhar a eleição no primeiro turno, sem depender de apoio político das instituições partidárias e candidaturas do centro democrático (embora sem dispensar apoios avulsos e votos de seus potenciais eleitores), a missão daquele “centrinho”, ao contrário da do centrão, é construir a oposição necessária.  Havendo segundo turno, essa é pauta em aberto, mas ainda assim a saúde democrática do país pedirá, em algum momento, uma oposição comprometida com ela.

Haverá casos e casos. Veja-se, por exemplo, o da candidata Simone Tebet e do seu partido, o MDB. Por toda a postura moderada e ao mesmo tempo assertiva que Simone adotou na campanha, sua atitude imediata só poderá ser de expectativa generosa e disposição a diálogo. Mas para que essa atitude não se confunda com oportunismo ou “entrismo”, precisará valorizar os votos que tiver no primeiro turno. Independência política em relação ao futuro governo é esperado de uma candidata que não condenou – em vez disso, renovou – o programa mais recente do seu partido, a chamada “ponte para o futuro”.  Supõe-se que um diálogo republicano de Lula com ela e com o MDB tenha de começar por aí.

Já a frente eleitoral ampla para livrar o Brasil de Bolsonaro já tem seu script consagrado na sociedade. É exatamente o que já se busca articular, segundo matéria assinada pelos jornalistas Pedro Venceslau e Beatriz Bulla (“Grupos já buscam articular ato por frente ampla contra Bolsonaro em eventual segundo turno”), publicada pelo Estadão em 27.09.22. Nada de devaneio, uma iniciativa de grupos, entidades e personalidades com nomes, sobrenomes e inserções sociais respeitáveis, suprapartidárias e eficazes. É o roteiro de um movimento político e cívico que pode fazer do Brasil um caso exemplar de como um país liberta-se, pela política (e com sustentação política maior do que a rejeição dos EUA a Trump), de um sequestro extremista que tem a mesma natureza dos que hoje ameaçam algumas das mais consistentes democracias do planeta. Certamente já não faltam indícios da dimensão internacional do que está em jogo em nosso país, nessas eleições.

Outubro breve e outubro largo são duas pistas alternativas pelas quais o sistema político da república democrática, a sociedade civil e o eleitorado do Brasil poderão despachar o mito que até aqui vinha fazendo os três de reféns. A decisão sobre por qual das duas pistas a elite política trafegará é do eleitor, que é o ator do presente imediato, um presente dado pela fotografa de suas necessidades prementes e de seus valores, arraigados ou fluidos. Já a escolha da direção objetiva das coisas é missão da liderança política, que precisa operar num presente contínuo, onde precisarão estar seus cérebros e seus pés. Nesse presente saturado por experiências do passado e portador de ambições de futuro, umas e outras mobilizam legítimas emoções que serão solidamente políticas se forem sempre contidas por um respeito racional, primordial, do político à importância do momento e de suas circunstâncias.

Votemos em paz e que a política nos acompanhe!

*Cientista político e professor da UFBa.

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