domingo, 2 de outubro de 2022

Almir Pazzianotto Pinto* - Jango e Lula, vidas paralelas

O Estado de S. Paulo

A implantação de república sindicalista, se não for refreada a tempo, poderá abrir as portas para a criação da república popular do Brasil

Durante o breve governo João Goulart (1961-1964), cuja assunção à Presidência da República ocorreu graças à inesperada renúncia de Jânio Quadros (25/8/1961), estivemos sob a ameaça de implantação de República sindicalista. Aceito com reservas por parte das Forçar Armadas, João Goulart foi convencido a se precaver contra eventual golpe, apoiado em dispositivos militar e sindical, o primeiro articulado pelo general Assis Brasil, o segundo, pela Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT). 

O mundo encontrava-se dominado pelo clima de guerra fria entre o bloco comunista, comandado pela União Soviética, e as democracias ocidentais, tendo à frente os Estados Unidos da América. A revolução cubana, liderada por Fidel Castro e Che Guevara, conquistara admiradores entre nós. Cuba era a cabeça de ponte comunista na América Central, pronta para apoiar guerrilhas no continente.

A desconfiança em relação a Jango surgira em 1953, após sua nomeação para ministro do Trabalho pelo presidente Getúlio Vargas, para substituir o ministro Segadas Viana. Em março de 1964, Jango foi confrontado por manifesto assinado por 81 coronéis e tenentes-coronéis, “em protesto contra a exiguidade dos recursos destinados ao Exército e a proposta governamental de elevação do salário mínimo”, e foi obrigado a se exonerar.

O governo Jango se caracterizou por intensas agitações. No Nordeste, as Ligas Camponesas, chefiadas por Francisco Julião, representavam perigosas ameaças aos proprietários de engenhos de açúcar. Portuários, ferroviários, tecelões, gráficos e bancários pressionavam o presidente para conseguir aumentos salariais, decretando greves em setores essenciais. Atribui-se a Luís Carlos Prestes, histórico líder comunista, a frase: “Estamos no poder, falta-nos tomar o governo”.

O relato do breve e tumultuado período compreendido entre setembro de 1961 e março de 1964 é encontrado em Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964), de Thomas E. Skidmore (Ed. Paz e Terra, RJ, 1975); Jango, um depoimento pessoal, de João Pinheiro Neto (Ed. Record, RJ, 1993); Sexta-Feira 13 – Os últimos dias do governo João Goulart, de Abelardo Jurema (Ed. O Cruzeiro, RJ, 1964); Sindicalismo no processo político do Brasil, de Kenneth Paul Erickson (Ed. Brasiliense, SP, 1979); Visões do golpe – A memória militar sobre 1964, de Maria Celina D’Araújo et al., Relume Dumará, RJ, 1994); Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro – Pós-1930 (Ed. FGV-CPDOC, RJ); Março 31, de Fernando Pedreira (José Álvaro Editor, RJ, 1964); e Memórias de um stalinista, de Hércules Corrêa (Ed. Opera Nostra, RJ, 1994). Além destes, dezenas de livros e artigos se ocuparam do “presidente perplexo” que governou “preso entre extremistas de direita e de esquerda”, como escreveu Skidmore.

Por razões que somente ele poderia explicar, Jango resolveu governar em descompasso com empresários e Forças Armadas. Fazendo da reforma agrária a meta principal do governo, atraiu a oposição dos conservadores, e, por se conduzir de maneira vacilante, foi incapaz de conquistar o apoio da esquerda, que o observava com desconfiança, como se evidenciou ao tentar a decretação do estado de sítio, em 4 de outubro de 1963, e ser obrigado a retroceder três dias depois.

Vivi a época de Goulart. Acompanho a vida sindical desde 1961. Presenciei de perto o golpe de 31 de março de 1964. É irresistível, portanto, o desejo de traçar um paralelo entre João Goulart e Luiz Inácio Lula da Silva, que lhe sucedeu tendo como propósito implantar uma república sindicalista.

Lula “é uma charada envolvida em mistério, dentro de um enigma”, como disse Winston Churchill sobre a União Soviética. De volta ao Planalto, o animal político que nele vive e obedece apenas aos instintos governará com os olhos voltados para o povo e os ouvidos, para a Avenida Faria Lima.

Em dois momentos de grave crise, Jango cedeu para evitar a guerra civil, como lhe propunha o cunhado Leonel Brizola. A primeira vez, ao aceitar a mudança do regime presidencialista para o parlamentarismo, conforme lhe exigiam os ministros militares, marechal Odílio Denis, do Exército; almirante Sílvio Heck, da Marinha; e brigadeiro Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica. A segunda, quando preferiu se exilar no Uruguai ao invés de reagir ao golpe de 31 de março.

Milhares de camisas e bandeiras vermelhas que ocuparam as grandes avenidas no final da campanha, em apoio ostensivo a Lula, nos obrigam a refletir se corremos o risco da tomada de medidas autoritárias, segundo o figurino venezuelano, como passos iniciais para a tomada total do poder.

A implantação de república sindicalista, se não for refreada a tempo, poderá abrir as portas para a criação da república popular do Brasil. Cuba, Nicarágua, Chile, Argentina, Venezuela e Peru são modelos que devemos rejeitar.

Apesar dos problemas e defeitos que lhe reconhecemos, a esperança de preservação do Estado Democrático de Direito, sem recaída em nova ditadura, repousa na preservação intacta da Constituição.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)

Um comentário:

Anônimo disse...

Darcy Ribeiro, que participou do governo com Jango, tem depoimentos similares sobre ele. Mas Lula e Jango são muito diferentes. Pra começar, Jango era fazendeiro e empresário, enquanto Lula foi operário e sindicalista. A partir daí, muitas outras diferenças surgem. Acho que o colunista se perdeu em sua comparação.