O Estado de S. Paulo
Extensa e complexa, a agenda de
normalização do País deve ser enfrentada com serenidade, mas com firmeza
Levará tempo para dissipar o veneno que
impregnou a atmosfera política brasileira nos últimos anos. A boa gestão da
economia pelo futuro governo é condição necessária para que isso ocorra. Mas
não é condição suficiente.
A impregnação vem de longe, ao menos desde
2014, quando se fez “o diabo” para reeleger Dilma e, em seguida, para apeá-la
do poder. O processo ganhou intensidade e escala sem precedentes nos últimos
quatro anos e atingiu seu ponto de saturação máximo nesta campanha eleitoral.
As cenas vistas nos últimos dias mostram aonde chegou o delírio promovido pelo
autoritarismo bolsonarista.
O ovo da serpente começou a ser chocado quando a disputa normal entre as forças democráticas se tornou uma luta destrutiva entre “nós” e “eles” e se acirrou a competição por mais recursos privados para o financiamento da atividade política, com as consequências conhecidas. A Lava Jato saiu dos trilhos, mas os esquemas de corrupção eram reais. A dura travessia do mandato presidencial que agora se encerra deve servir de lição definitiva para que o erro e o pecado não se repitam.
Além da antipolítica, o bolsonarismo
mobilizou um anticomunismo primitivo e o temor à dissolução dos valores e da
família tradicionais, instrumentalizando o cristianismo para ambos os fins.
Criou fantasmas, inflados à base de notícias fraudulentas e distorções da
realidade factual, para despertar sentimentos paranoicos de ameaça. A
desinflação desses fantasmas é essencial para o País voltar à normalidade.
Toda paranoia requer um grão de verdade
para ganhar asas e se descolar da realidade. A resistência do PT a chamar os
regimes autoritários ditos de esquerda na América Latina pelo que são
(ditaduras, nos casos de Cuba e Nicarágua, e quase ditaduras, no da Venezuela)
e a criticar a violação de direitos humanos nesses países serviu de alimento
para a mensagem infundada de que, com Lula, o Brasil caminharia para o
socialismo. Para piorar, houve prodigalidade nos empréstimos estatais feitos a
grandes empreiteiras brasileiras para a realização de obras nesses países.
Juntando uma coisa e outra, a extrema-direita formou a dupla de ataque
comunismo-corrupção. Desarticulá-la requer do novo governo deixar claro, por
palavras e atos, que não se moverá, na política externa, por velhas paixões ou
eventuais simpatias ideológicas (ao contrário do que fez o governo Bolsonaro).
Também em relação ao conservadorismo moral,
trata-se de colocar a bola no chão. Na análise das pesquisas qualitativas que
há muito tem feito com grupos evangélicos, a socióloga Esther Solano chama a
atenção para o fato de que, entre eles, estão longe de ser uniformes as
opiniões sobre gênero, sexualidade e família. Há unanimidade na rejeição ao
que, aos olhos de mulheres pobres conservadoras, é percebido como uma tentativa
de imposição de padrões morais estranhos ao universo ao qual pertencem. Mas
existe amplo espaço de diálogo sobre temas como a violência contra as mulheres,
as desigualdades de gênero no mercado de trabalho e a sobrecarga feminina no
cuidado com crianças e idosos da família. O fortalecimento de políticas
públicas voltadas para atenuar ou resolver esses problemas limitará as
possibilidades de manipulação de temores de ordem moral pela extrema-direita.
Além de implementá-las, o novo governo deve fazer a mediação política entre os
grupos progressistas engajados com a agenda de gênero, sexualidade e direitos
reprodutivos e a maioria mais conservadora na sociedade e, principalmente, no
Congresso, para não cair em armadilhas como a do impropriamente chamado “kit
gay”.
Outra tarefa inadiável será restabelecer a
normalidade das relações entre civis e militares, que começou a sair dos eixos
no governo Dilma Rousseff e descarrilou com Bolsonaro. De um lado, é preciso
desmilitarizar o governo e, de outro, prestigiar as Forças Armadas como
instituição do Estado brasileiro. Cicatrizar as feridas abertas pelo golpe de
1964 e pela violação de direitos humanos durante o regime autoritário levará
tempo. Não se trata de esquecer o que ocorreu no passado, mas sim de concentrar
a atenção no que é preciso fazer agora, sem agravar tensões contraproducentes.
Na mesma linha, importa despolitizar a
Polícia Rodoviária Federal, reforçar a gestão profissional da Polícia Federal e
restabelecer a autonomia da Procuradoria-Geral da República. A
instrumentalização maior ou menor desses órgãos do Estado em favor do projeto
político de Bolsonaro foi parte central da estratégia de ataque às instituições
democráticas. Que o projeto tenha fracassado não exime de responsabilidade aqueles
que dele participaram. Quem, comprovadamente, tenha atuado no financiamento e
na organização de atos visando a ameaçar a ordem democrática e a integridade
física de ministros do STF, coagir eleitores e jornalistas, entre outros
crimes, deve sofrer as consequências do que fez, assegurados o pleno direito de
defesa e a presunção de inocência.
Extensa e complexa, a agenda de
normalização do País deve ser enfrentada com serenidade, mas com firmeza.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
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