domingo, 18 de dezembro de 2022

Luiz Sérgio Henriques* - O reacionarismo de massas em questão

O Estado de S. Paulo.

Ainda cabe reafirmar neste início de governo a necessidade de uma plataforma unitária que de novo conjugue esquerda e liberais – na economia e na política

Daqui por diante e pelos próximos anos, a democracia brasileira tem um desafio incontornável pela frente, a saber, o de esvaziar a extraordinária dimensão de massas que adquiriu entre nós a direita autocrática. Dezenas de milhões de cidadãos, sem obviamente serem fascistas ou coisa que o valha, deram por duas vezes seguidas consentimento – em eleições inquestionáveis – a um programa de natureza autoritária, num tempo em que o autoritarismo, especialmente o de ultradireita, tem mostrado por toda parte uma inclinação acentuadamente destrutiva.

Fraco consolo o de saber que não estivemos nem estamos sós neste movimento globalmente regressivo. As dificuldades das democracias ocidentais superam fronteiras e se entrelaçam de múltiplas maneiras, mostrando em cada canto suas particularidades. Não temos ainda, por exemplo, o drama da imigração massiva, o que nos poupa de fantasmagorias como o medo da “grande substituição” de populações brancas e cristãs por gente pobre de origem étnica e fé religiosa diferentes. Mas por aqui andou, já na posse presidencial de 2019, o húngaro Viktor Orbán, um dos paladinos deste tipo de xenofobia que vicissitudes quase insondáveis, neste mundo de ponta-cabeça, transformaram em guia da recessão democrática.

Laços evidentes unem o reacionarismo brasileiro e o norte-americano. Admitamos que a vitória de Trump em 2016 tenha favorecido de algum modo a de Bolsonaro em 2018, quando menos por ressaltar a potência aparente de um Zeitgeist propício à demagogia populista. Se há um elemento especulativo em tal afirmação, mais plausível será afirmar que, tivesse Trump confirmado o segundo mandato, a casamata bolsonarista estaria mais bem defendida na recente eleição. Bolsonaro tem uma relação de canibalização com os partidos a que adere, enquanto Trump parece ter capturado a alma de um dos dois grandes partidos nacionais. Feita a ressalva, lá como aqui há milhões de eleitores desafeiçoados à democracia e à ideia de alternância – e eventualmente dispostos a uma mobilização perigosamente antissistêmica.

Sofremos o impacto dos maus ventos externos, mas antes de mais nada temos de nos haver com os nossos próprios males. Eles claramente mudaram de qualidade em 2018, quando, pela primeira vez desde a Nova República, um aspirante a autocrata passou a testar sistematicamente os limites escritos e não escritos da Constituição. Tratou-se de fato inédito, que fez com que se reunissem lado a lado, numa mesma trincheira, forças e personalidades que, entre outras coisas, dividiram-se acerbamente por ocasião do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Valha por todos o nome de Alexandre de Moraes, político em 2015, magistrado desde 2017, defensor indiscutível da legalidade democrática em conjuntura tempestuosa e ainda em aberto.

A união de forças heterogêneas reatualizou a política de frente mais além das fronteiras da esquerda em sentido estrito. Um primeiro indício, ainda simbólico, foi a formação da chapa presidencial, demonstrando retrospectivamente a inexistência de uma muralha da China entre o líder petista e um tucano de origem controlada.

Se quisermos generalizar, a história da redemocratização não pode ser contada sem a aliança do centro e da esquerda, a que se associaram os dissidentes do regime ditatorial, em nome da superação legalista e constitucional deste mesmo regime. Esta, a forma clássica de isolar e retirar a base de sustentação de um adversário comum. Bem verdade que o PT muitas vezes se pôs à margem daquela conexão, ocupado que estava com a definição da própria fisionomia. Daí para o surgimento de uma espécie de “patriotismo de partido”, duro de morrer, foi só um pulo. Agora, sinais negativos à parte, ainda cabe reafirmar neste início de governo a necessidade de uma plataforma unitária que de novo conjugue esquerda e liberais – na economia e na política.

A formação de um governo frentista orientado por um programa comum teria impacto positivo nos hábitos e costumes pátrios, regenerando-os gradativamente em vários sentidos. Por si só, não levaria ao esvaziamento da extrema direita subversiva, mas seria um passo na direção correta, inserindo elementos de tolerância e cooperação entre os partidos de governo, assim como entre estes e os que se dispuserem a constituir a indispensável oposição democrática.

A retirada do apoio de massas ao extremismo supõe um sistema partidário articulado que exclua a lógica binária entre esquerda e (extrema) direita, amigos e inimigos, uma lógica que imobiliza a imaginação e não faz jus à complexidade do País, para não dizer que literalmente impede qualquer hipótese mudancista. É certo dizer que aquele sistema não existe e, portanto, seguimos privados de uma das mais eficientes barreiras de contenção do extremismo. Não menos certo, porém, é que muita coisa agora depende de palavras e ações da esquerda no poder, da sua capacidade de lançar pontes e fazer alianças, diminuindo as razões, ou desrazões, que levaram tantos a escolher a regressão e, em alguns poucos casos, até a violência política.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muitos escolheram o atraso como saída.