O Estado de S. Paulo.
Ainda cabe reafirmar neste início de governo a necessidade de uma plataforma unitária que de novo conjugue esquerda e liberais – na economia e na política
Daqui por diante e pelos próximos anos, a democracia brasileira tem um desafio incontornável pela frente, a saber, o de esvaziar a extraordinária dimensão de massas que adquiriu entre nós a direita autocrática. Dezenas de milhões de cidadãos, sem obviamente serem fascistas ou coisa que o valha, deram por duas vezes seguidas consentimento – em eleições inquestionáveis – a um programa de natureza autoritária, num tempo em que o autoritarismo, especialmente o de ultradireita, tem mostrado por toda parte uma inclinação acentuadamente destrutiva.
Fraco consolo o de saber que não estivemos nem estamos sós neste movimento globalmente regressivo. As dificuldades das democracias ocidentais superam fronteiras e se entrelaçam de múltiplas maneiras, mostrando em cada canto suas particularidades. Não temos ainda, por exemplo, o drama da imigração massiva, o que nos poupa de fantasmagorias como o medo da “grande substituição” de populações brancas e cristãs por gente pobre de origem étnica e fé religiosa diferentes. Mas por aqui andou, já na posse presidencial de 2019, o húngaro Viktor Orbán, um dos paladinos deste tipo de xenofobia que vicissitudes quase insondáveis, neste mundo de ponta-cabeça, transformaram em guia da recessão democrática.
Laços evidentes unem o reacionarismo
brasileiro e o norte-americano. Admitamos que a vitória de Trump em 2016 tenha
favorecido de algum modo a de Bolsonaro em 2018, quando menos por ressaltar a
potência aparente de um Zeitgeist propício à demagogia populista. Se há um
elemento especulativo em tal afirmação, mais plausível será afirmar que,
tivesse Trump confirmado o segundo mandato, a casamata bolsonarista estaria
mais bem defendida na recente eleição. Bolsonaro tem uma relação de
canibalização com os partidos a que adere, enquanto Trump parece ter capturado
a alma de um dos dois grandes partidos nacionais. Feita a ressalva, lá como
aqui há milhões de eleitores desafeiçoados à democracia e à ideia de
alternância – e eventualmente dispostos a uma mobilização perigosamente
antissistêmica.
Sofremos o impacto dos maus ventos
externos, mas antes de mais nada temos de nos haver com os nossos próprios
males. Eles claramente mudaram de qualidade em 2018, quando, pela primeira vez
desde a Nova República, um aspirante a autocrata passou a testar sistematicamente
os limites escritos e não escritos da Constituição. Tratou-se de fato inédito,
que fez com que se reunissem lado a lado, numa mesma trincheira, forças e
personalidades que, entre outras coisas, dividiram-se acerbamente por ocasião
do impeachment da presidente Dilma Rousseff. Valha por todos o nome de
Alexandre de Moraes, político em 2015, magistrado desde 2017, defensor
indiscutível da legalidade democrática em conjuntura tempestuosa e ainda em
aberto.
A união de forças heterogêneas reatualizou
a política de frente mais além das fronteiras da esquerda em sentido estrito.
Um primeiro indício, ainda simbólico, foi a formação da chapa presidencial,
demonstrando retrospectivamente a inexistência de uma muralha da China entre o
líder petista e um tucano de origem controlada.
Se quisermos generalizar, a história da
redemocratização não pode ser contada sem a aliança do centro e da esquerda, a
que se associaram os dissidentes do regime ditatorial, em nome da superação
legalista e constitucional deste mesmo regime. Esta, a forma clássica de isolar
e retirar a base de sustentação de um adversário comum. Bem verdade que o PT
muitas vezes se pôs à margem daquela conexão, ocupado que estava com a
definição da própria fisionomia. Daí para o surgimento de uma espécie de
“patriotismo de partido”, duro de morrer, foi só um pulo. Agora, sinais
negativos à parte, ainda cabe reafirmar neste início de governo a necessidade
de uma plataforma unitária que de novo conjugue esquerda e liberais – na
economia e na política.
A formação de um governo frentista
orientado por um programa comum teria impacto positivo nos hábitos e costumes
pátrios, regenerando-os gradativamente em vários sentidos. Por si só, não
levaria ao esvaziamento da extrema direita subversiva, mas seria um passo na
direção correta, inserindo elementos de tolerância e cooperação entre os
partidos de governo, assim como entre estes e os que se dispuserem a constituir
a indispensável oposição democrática.
A retirada do apoio de massas ao extremismo
supõe um sistema partidário articulado que exclua a lógica binária entre
esquerda e (extrema) direita, amigos e inimigos, uma lógica que imobiliza a
imaginação e não faz jus à complexidade do País, para não dizer que
literalmente impede qualquer hipótese mudancista. É certo dizer que aquele
sistema não existe e, portanto, seguimos privados de uma das mais eficientes
barreiras de contenção do extremismo. Não menos certo, porém, é que muita coisa
agora depende de palavras e ações da esquerda no poder, da sua capacidade de
lançar pontes e fazer alianças, diminuindo as razões, ou desrazões, que levaram
tantos a escolher a regressão e, em alguns poucos casos, até a violência
política.
*Tradutor e ensaísta, é um dos
organizadores das obras de Gramsci no Brasil
Um comentário:
Muitos escolheram o atraso como saída.
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