domingo, 4 de dezembro de 2022

Muniz Sodré* - A epifania de um gol

Folha de S. Paulo

É sintomático que outra consciência venha à luz exatamente onde irrompe obscurantismo

Dominar a bola com a ponta da chuteira esquerda e, num voleio perfeito, girar em torno do próprio eixo para chutar com a direita é uma descrição correta, mas escassa, do segundo gol de Richarlison contra a seleção da Sérvia na Copa do Mundo. Obra-prima, de arte, um marco na história do futebol. Aos olhos de muitos, o movimento perfez no espaço a letra inicial de Lula. Puro acaso, mas um caso de ironia objetiva.
Disso são caprichosos os exemplos. É que "ironia", a figura de linguagem em que alguém diz o contrário daquilo que quer dar a entender, se faz na escuta, isto é, na subjetividade do interlocutor. Mas há situações em que a disparidade entre a intenção e o resultado da ação permite falar de ironia objetiva.

Assim, durante a ditadura, numa cerimônia ao ar livre em Brasília, a bandeira nacional desfraldada no topo de um mastro, por efeito de uma ventania, ficou registrada numa foto com as palavras de "ordem pro-Esso", em vez de "progresso". Esso, a companhia petrolífera, era símbolo do império americano. Algo acidental, mas, ao olhar analítico, a concreta e irônica insinuação de um poder maior.

Não é apenas jogo verbal, há fundos de sentido. Na Copa América, Richarlison havia dedicado sua chuteira à ciência, para depois leiloá-la e financiar um grupo de pesquisa na USP. Aos 25 anos, atento à desigualdade das condições de vida no país, ele se diz um apoiador de causas. Dentro ou fora de campo, suas inclinações políticas estão afinadas com combate à fome e proteção climática.

O calor de uma Copa dissolve polarizações miúdas. É impossível, porém, deixar de registrar as diferenças entre postura solidarista e prepotência narcísica de jogadores. Impossível, porque futebol não é apenas esporte e negócio, mas um jogo cênico de representações marcantes que, consciente ou inconscientemente, confrontam-se frente à ordem social existente. O campo em que brilham os ídolos vai além dos gramados. Protestando, os iranianos deram um novo tom, os alemães também.

É sintomático que uma outra consciência venha à luz exatamente onde irrompe obscurantismo, nas fissuras do tapa-olho arquitetônico do emir. Em si mesmo, o Qatar como sede do Mundial é mais uma ironia objetiva: a euforia do jogo diz coisa adversa ao trabalho semiescravo dos imigrantes e ao sufoco das liberdades democráticas. Daí a epifania alegre de um gol excepcional. Se alegria é mesmo uma suspensão tempestiva da gravidade das coisas para a aprovação irrestrita do mundo, o voleio de Richarlison, um drible na lei da gravidade, imprime ironicamente à Copa uma vitoriosa marca mundial de identidade brasileira, qualquer que seja o resultado técnico no final.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô"

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