Folha de S. Paulo
Compromisso militar com ordem constitucional não é confiável
Aparente irrelevância, a indecisão sobre
uso de carro sem capota pelo presidente
Lula, no breve desfile pós-posse, reflete as entranhas complexas da
situação como poucas outras sínteses o fariam.
A dúvida admite, em princípio, a
continuidade de uma tradição de cerimonial em dias que, infestados de
criminalidade política, repelem toda a tradição das mudanças de governo.
O golpismo não
mudou muito mais do que o vocabulário eleitoral.
O golpe não saiu das casernas por dois
fatores principais. No plano interno, a firme ação da Justiça Eleitoral
conduzida pelos ministros Alexandre de
Moraes e Edson Fachin,
e secundada pelo Supremo, contra a sucessão de preparativos lançados pelo
golpismo para criar o seu pretexto.
No plano externo, foi a pressão em apoio à legalidade, uma forma de se opor a Bolsonaro. A certeza de sanções internacionais e isolamento sufocante do país, como represália ao golpe, acionou freios medrosos no golpismo militar.
Os dois fatores continuam ativos. Para dar
uma ideia do que é a força aplicada no caso pelo fator externo, até o comunicado
oficial da reunião de Joe Biden com o presidente francês Emmanuel Macron, em
Washington, há quatro dias, trouxe uma advertência incisiva: "França e
Estados Unidos agirão juntos também para proteger as florestas tropicais".
Chegou a reiterar a disposição na mesma
frase: "E combater o desmatamento
e o desmatamento ilegal". Não precisaram incluir o nome Brasil
nem citar Bolsonaro.
Os operadores amazônicos das serras e os
dirigentes brasilienses do contrabando de madeira têm alguma sobrevida, mas o
bolsonarismo fardado sabe que o seu golpe está derrotado.
A alternativa do golpismo à derrota dupla,
na eleição e na recusa à legalidade, é a violência.
Ter essa percepção à frente de todas é indispensável ao chamado grupo de
transição e, em geral, aos democratas.
Do contrário, veem-se nas frentes dos
quartéis aglomerações de fanáticos, que são fanáticos sim, mas também
agressores, transgressores da urbanidade, sem faltarem sequer os homicidas em
potencial.
Como bem exemplifica o sargento da Marinha,
ligado ao general Augusto Heleno, que nega a possibilidade de Lula viver até a
posse. Veem-se bandeiras do PT na multidão e se confiará que são todos ali
lulistas.
Mas o velho SNI, que sobrevive sob os nomes
de Abin e Gabinete de Segurança Institucional, do Planalto, tentou infiltrar
agentes do general Heleno até nos grupos da transição.
Fanáticos, maníacos, obcecados, em variadas
aglomerações ou sós, hoje são muitos milhões à disposição de manejadores. E a
verdade é que o compromisso militar com a ordem constitucional não é confiável.
Lula é aguardado por uma missão gigantesca.
Só a restauração do que os jagunços de Bolsonaro devastaram já ocuparia o
mandato.
O urgente é muito maior. São 33
milhões passando fome, na contagem que não pode alcançar nem a
verdade das favelas, quanto mais os fundões desse país sem fim.
E Lula já recebeu o renovado reconhecimento
e a celebração do mundo, postos na sensação de que "O Brasil voltou"
na sua volta. Deve ter recolhimento assegurado. Expô-lo e expor-se é de uma
irresponsabilidade inominável, mesmo se inconsciente.
Um lema talvez útil para estes e os futuros
dias: Lula não foi eleito para ser alvo.
3 comentários:
Isto é jornalismo de verdade, de 1a qualidade!
Com poucas, pouquíssimas exceções, o resto é de paquitas de mercado, vozes do dono.
"acionou freios medrosos no golpismo militar."
Medrosos. Se não fosse o medo, teriam golpeado o país. Ainda bem q são medrosos.
Mas o medo não é o melhor critério de decisão. Nossos milicos deveriam obedecer nossa constituição e não teriam medo.
Se têm medo é porque temem as consequências e, portanto, sabem q erram.
Se não erram, deveriam agir sem medo das consequências. Como não agiram, imaginando-se certos, a inação os deixa ainda mais covardes.
Triste.
"O compromisso militar com a ordem constitucional não é confiável". É terrível isso. Pusilânimes!
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