domingo, 4 de dezembro de 2022

Luiz Sérgio Henriques* - Breve notícia da terra devastada

Celebração grosseira do ‘politicamente incorreto’ contaminou parte das elites e se espalhou pela sociedade

Em Washington, mal começado o governo e já na primeira viagem internacional, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cunhou a epígrafe definitiva da obra a que se dedicaria com afinco nos anos seguintes. Conservadores de variado coturno – ou melhor, reacionários do calibre de Olavo de Carvalho e Steve Bannon – ouviram-no proclamar o sentido da “missão divina” que se autoatribuía e que consistia em “desconstruir” e “desfazer” regras e valores, hábitos e instituições, antes de começar a pôr de pé a parte supostamente positiva da sua agenda. 

Livramo-nos há pouco da promessa bolsonarista da “construção” a ser cumprida em mais um mandato, mas é forçoso admitir que só quatro anos bastaram para legar um cenário de terra devastada. Em outras palavras, a metade inicial do projeto está realizada. A celebração grosseira do “politicamente incorreto” contaminou parte das elites e infiltrou-se por toda a sociedade, criando um reacionarismo de massas agressivo e destruidor. 

Juristas defenderam uma leitura golpista da Constituição – em particular, do artigo 142, simultaneamente curto e prolixo, que na aparência dá voz a quem numa democracia deve ser o “grande mudo”. Médicos militaram, e talvez militem ainda, no movimento antivacina, deixando um traço lastimável de retrocesso civilizatório. E a violência política tornou-se um recurso, quando não legítimo, ao menos aceitável para setores da sociedade contaminados pelo culto às armas e pela tentação de eliminar fisicamente o inimigo interno – se preciso for. 

Na verdade, a contrarrevolução política e cultural a que fomos submetidos desde 2019 – e a que, em certa medida, assistimos “bestializados” – teve mais de uma vertente. Desde logo, vimo-nos arrastados pela grande crise das democracias contemporâneas, que está longe de ter se esgotado e parece renovar-se em cada eleição e em cada momento. 

Uma crise estrutural, certamente, com aspectos até bizarros. Não é comum que alguém como Viktor Orban, autocrata de um país distante e pequeno (ainda que culturalmente muito relevante), torne-se uma espécie de ídolo global dos “revolucionários” da extrema-direita, inclusive no país-chave do Ocidente, os Estados Unidos. Mais do que ídolo, um modelo para o programa de corrosão das democracias aplicado em várias realidades nacionais. Pois a Viktor Orban fomos também apresentados na posse mesma do presidente Bolsonaro, sinalizando uma aliança e uma afinidade que até então inocentemente ignorávamos.   

Há também uma dimensão propriamente interna – ou, mais do que isto, um emaranhado de contradições que são coisas nossas e nos levaram à beira do precipício. A exasperação do conflito político, especialmente a partir de 2013, teve efeitos desastrosos, cuja enumeração exaustiva não cabe aqui.

Mencionemos só um exemplo. Não soubemos lidar nada bem com o instituto do impeachment. Todos os governos não petistas, sem exceção, foram alvo de insistentes pedidos de impedimento por parte do PT ou de figuras próximas. E, no entanto, o impeachment de Dilma Rousseff, num contexto de recessão brutal e perda de apoio parlamentar, teve como contrapartida a acusação inapelável de “golpe”, como se 2016 tivesse sido o marco zero da ruptura institucional – o que, a bem da verdade, não tivemos em momento algum, sequer em 2018 e menos ainda, obviamente, em 2022. Aliás, com seus sinais de nova esperança, a data mais recente reuniu numa só trincheira todos os personagens de vocação democrática, inclusive os que antes se contrapuseram duramente.

Coisa bem diferente é postular que o segundo mandato do aspirante a autocrata teria aprofundado a ação da toupeira ou, para usar termo militar, o trabalho de sapa contra as instituições consagradas na Constituição. Uma democracia fortemente tutelada e uma sociedade conflagrada poderiam, em conjunto, somar a repressão “tradicional” dos aparelhos de Estado e a violência nascida das entranhas do corpo social, violando todas as dimensões da liberdade duramente conquistadas após a ditadura. E assim terminariam por se desenhar as linhas de um pós-fascismo, ou de um fascismo do século XXI, encerrando tragicamente, com um grau maior ou menor de coerção, o mais longo período de vida democrática que tivemos sob a República.  

Há quem diga que construções intelectuais dizem pouco, quase nada, sobre as lutas cruas pelo poder a que se entregam de corpo e alma as forças políticas e que são sua razão única de ser. Afinal, o cinismo autoriza a dizer que programas convincentes sempre podem ser encomendados na primeira esquina e nunca falta gente para fornecer discursos altissonantes. 

A vantagem de conjunturas críticas, como esta que ainda não deixamos para trás, é que evidenciam a conexão mais íntima entre ideias e atitudes, ideólogos e políticos – mesmo que uns sejam farsantes e os outros toscos. Uma conexão que funciona para o bem e, como acabamos de ver, vezes sem conta para o mal, o que talvez seja uma das advertências mais poderosas sobre as possibilidades de degradação social e política sempre latentes em qualquer circunstância.    

*Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)

4 comentários:

Anônimo disse...

Tanta conversa fiada pra defender um bandido preso há mais de 20 anos por corrupção, que devastou a nossa economia e acabou com o sonho do brasileiro , vocês são hipócritas , todos cúmplices dessa grande Trama Internacional mas vão perder no final

Anônimo disse...

Texto preciso e precioso! Parabéns ao colunista e ao blog que divulga seu trabalho! A conversa fiada e mentiroso fica por conta do anônimo acima, que vive no seu mundo particular provavelmente na frente dalgum quartel...

Anônimo disse...

Que comentário mais entusiasmante; que capacidade de elaboração !

Fernando Carvalho disse...

Gostaria de fazer algumas objeções às colocações de nosso querido Luiz Sérgio. Pra mim o que vitimou Dilma foi um sofisticado golpe parlamentar, jurídico, midiático, militar e popular (classe média na rua como sempre no papel de inocente útil). Dilma fica devendo à sociedade nem que seja um livrinho de bolso contando essa história. Luiz Sérgio ao reconhecer que Viktor Orban foi uma novidade para nosotros de la izquierda. Fica claro que Trump, o boçal e Orban são três marionetes manipulados por sofisticados prestidigitadores do grande capital internacional. E utilizando as palavras do companheiro o que "reuniu os democratas numa só trincheira" foi justamente o neofascismo bundalelê do boçal. Felizmente os democratas no Brasil compraram a estratégia dos comunistas do século XX contra o nazifascismo e viabilizaram a "frente ampla" que se fez necessária para encaçapar o boçal. O futuro do Brasil será uma disputa entre os democratas lutando por uma democracia cada vez mais democrática que interessa ao povo brasileiro. E a direita dividida entre os nazilatifundiários e uma direita moderna que depois de ter explorado o trabalho escravo dos africanos no século XIX, do proletariado no século XX agora no século XXI resta o fascismo bundalelê e tchan tchan tchan tchan a ultérrima fase de desenvolvimento do capitalismo: o metacapitalismo. Kkkkk