O Globo
No curto prazo, o golpismo dos grupos
antidemocráticos acampados nos quartéis será derrotado — não há dúvida disso.
Mas, no médio prazo, a aspiração revolucionária dos grupos de extrema direita é
um perigo que não deve ser subestimado. Se não agirmos para criar instrumentos
capazes de defender a democracia com firmeza, eles se aproveitarão das
liberdades constitucionais para derrubá-la na primeira oportunidade. Por isso a
estratégia adotada pela Justiça de criar mecanismos defensivos inspirados na
teoria da “democracia militante” precisa ser adotada também pelos outros
Poderes.
O enfrentamento do movimento golpista é feito hoje praticamente apenas pela Justiça: Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com base nos inquéritos dos atos antidemocráticos e numa resolução normativa do TSE, a Justiça tem investigado e prendido suspeitos de arquitetar ações para desafiar o resultado das eleições e derrubar o regime democrático, bloqueado grupos de Telegram e WhatsApp e contas nas mídias sociais que também têm pregado a derrubada do regime.
Essa defesa, porém, está assentada em bases
jurídicas frágeis. O inquérito do STF é criticado por muitos juristas por ter
sido aberto “de ofício”, com base numa interpretação extensiva do que seria uma
infração cometida na sede do tribunal. Também é criticado por misturar papéis,
já que, nele, o STF é vítima, investigador, acusador e juiz. E a resolução do
TSE é criticada por ser muito ampla e ser usada muito tempo depois de
concluídas as eleições.
Embora as medidas sejam defensáveis, tanto
do ponto de vista jurídico quanto político, suas fragilidades são exploradas
pelos grupos antidemocráticos para desqualificar a ação da Justiça e alimentar
delírios de que vivemos numa “ditadura comunista” do Judiciário. Além disso, as
medidas concentram muito poder nas mãos de um único juiz, o ministro Alexandre de
Moraes, que preside o inquérito no STF e é também presidente do TSE.
Essa concentração de poderes extraordinários nas mãos de uma única pessoa não é
saudável e é muito perigosa.
Uma reportagem da Folha de S.Paulo mostrou
como as ações de Moraes têm sido respaldadas por outros ministros, invocando a
teoria da “democracia militante”, conceito forjado pelo jurista alemão Karl
Loewenstein para proteger a democracia liberal dos anos 1930 das ameaças de
grupos fascistas.
Segundo Loewenstein, os fascistas exploram
as liberdades constitucionais para propagar ideias antidemocráticas e se
organizar para derrubar o regime. Por isso a democracia deveria desenvolver
mecanismos de defesa, como leis impedindo que grupos políticos adotem uniformes
e portem armas, criando punições duras para a subversão da ordem democrática e,
no limite, banindo grupos cuja ideologia e visão de mundo não sejam compatíveis
com o regime democrático.
Os dois artigos clássicos de Loewenstein
dão o que pensar e sugerem caminhos de ação para o Brasil dos anos 2020. Nem
sempre o paralelo entre a extrema direita de hoje e o fascismo dos anos 1930 é
perfeito, mas há muitas semelhanças. O jurista alemão observa que o fascismo
não tem exatamente um modelo de sociedade e que, por isso, se define mais por
um conjunto de técnicas de ação — são justamente essas ações que precisam ser
bloqueadas por instrumentos legislativos.
Sem dúvida, isso vale para o bolsonarismo.
Ele tem se baseado na exploração de uma liberdade de expressão pouco regulada,
sobretudo nas mídias sociais, no acesso pouco controlado às armas de fogo, na
mobilização política das polícias e das Forças Armadas, em bloqueios de
estradas interrompendo o suprimento de bens essenciais e no questionamento, sem
qualquer embasamento, da lisura do processo eleitoral. Temos aí toda uma agenda
legislativa antiextremista para ser desenhada nos quatro anos de respiro pela
frente.
Para que um conjunto amplo de leis antiextremistas
seja aprovado, é preciso não apenas um grande esforço pela construção de
consenso entre as forças democráticas, mas também um governo com credenciais
democráticas impecáveis. Isso significa, entre outras coisas, que o governo
eleito precisará mudar seu discurso sobre os regimes não democráticos de
esquerda. Já não é mais suficiente dizer que esse é um assunto interno de cada
país. É preciso afirmar com clareza que uma ditadura de partido único como a de
Cuba é um modelo político deplorável.
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