sábado, 10 de dezembro de 2022

Pablo Ortellado - A democracia militante que inspira a luta contra o golpismo

O Globo

No curto prazo, o golpismo dos grupos antidemocráticos acampados nos quartéis será derrotado — não há dúvida disso. Mas, no médio prazo, a aspiração revolucionária dos grupos de extrema direita é um perigo que não deve ser subestimado. Se não agirmos para criar instrumentos capazes de defender a democracia com firmeza, eles se aproveitarão das liberdades constitucionais para derrubá-la na primeira oportunidade. Por isso a estratégia adotada pela Justiça de criar mecanismos defensivos inspirados na teoria da “democracia militante” precisa ser adotada também pelos outros Poderes.

O enfrentamento do movimento golpista é feito hoje praticamente apenas pela Justiça: Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com base nos inquéritos dos atos antidemocráticos e numa resolução normativa do TSE, a Justiça tem investigado e prendido suspeitos de arquitetar ações para desafiar o resultado das eleições e derrubar o regime democrático, bloqueado grupos de Telegram e WhatsApp e contas nas mídias sociais que também têm pregado a derrubada do regime.

Essa defesa, porém, está assentada em bases jurídicas frágeis. O inquérito do STF é criticado por muitos juristas por ter sido aberto “de ofício”, com base numa interpretação extensiva do que seria uma infração cometida na sede do tribunal. Também é criticado por misturar papéis, já que, nele, o STF é vítima, investigador, acusador e juiz. E a resolução do TSE é criticada por ser muito ampla e ser usada muito tempo depois de concluídas as eleições.

Embora as medidas sejam defensáveis, tanto do ponto de vista jurídico quanto político, suas fragilidades são exploradas pelos grupos antidemocráticos para desqualificar a ação da Justiça e alimentar delírios de que vivemos numa “ditadura comunista” do Judiciário. Além disso, as medidas concentram muito poder nas mãos de um único juiz, o ministro Alexandre de Moraes, que preside o inquérito no STF e é também presidente do TSE. Essa concentração de poderes extraordinários nas mãos de uma única pessoa não é saudável e é muito perigosa.

Uma reportagem da Folha de S.Paulo mostrou como as ações de Moraes têm sido respaldadas por outros ministros, invocando a teoria da “democracia militante”, conceito forjado pelo jurista alemão Karl Loewenstein para proteger a democracia liberal dos anos 1930 das ameaças de grupos fascistas.

Segundo Loewenstein, os fascistas exploram as liberdades constitucionais para propagar ideias antidemocráticas e se organizar para derrubar o regime. Por isso a democracia deveria desenvolver mecanismos de defesa, como leis impedindo que grupos políticos adotem uniformes e portem armas, criando punições duras para a subversão da ordem democrática e, no limite, banindo grupos cuja ideologia e visão de mundo não sejam compatíveis com o regime democrático.

Os dois artigos clássicos de Loewenstein dão o que pensar e sugerem caminhos de ação para o Brasil dos anos 2020. Nem sempre o paralelo entre a extrema direita de hoje e o fascismo dos anos 1930 é perfeito, mas há muitas semelhanças. O jurista alemão observa que o fascismo não tem exatamente um modelo de sociedade e que, por isso, se define mais por um conjunto de técnicas de ação — são justamente essas ações que precisam ser bloqueadas por instrumentos legislativos.

Sem dúvida, isso vale para o bolsonarismo. Ele tem se baseado na exploração de uma liberdade de expressão pouco regulada, sobretudo nas mídias sociais, no acesso pouco controlado às armas de fogo, na mobilização política das polícias e das Forças Armadas, em bloqueios de estradas interrompendo o suprimento de bens essenciais e no questionamento, sem qualquer embasamento, da lisura do processo eleitoral. Temos aí toda uma agenda legislativa antiextremista para ser desenhada nos quatro anos de respiro pela frente.

Para que um conjunto amplo de leis antiextremistas seja aprovado, é preciso não apenas um grande esforço pela construção de consenso entre as forças democráticas, mas também um governo com credenciais democráticas impecáveis. Isso significa, entre outras coisas, que o governo eleito precisará mudar seu discurso sobre os regimes não democráticos de esquerda. Já não é mais suficiente dizer que esse é um assunto interno de cada país. É preciso afirmar com clareza que uma ditadura de partido único como a de Cuba é um modelo político deplorável.

Nenhum comentário: