terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Alfredo Maciel da Silveira* - Planejamento - O último trem para o Brasil

Estava eu nos primeiros dias do ano com artigo sob o título acima, pronto para publicação. O discurso de posse da Ministra Simone Tebet dera-me a motivação para escrevê-lo. Mas sobrevieram os trágicos acontecimentos daquele domingo 8 de janeiro que mudaram o foco das atenções de todos os democratas. De imediato o Blog analisou o caráter terrorista dos ataques e a correlação de forças com a qual se defronta o governo Lula neste primeiro momento. Ver a propósito "Terrorismo em Janeiro de 2023".

Acho que a tragédia daquele domingo só reforça o que pretendo sugerir com aquele título, que parafraseia um outro, "O último trem para Paris", de um livro de autoria do ex- Ministro do Planejamento J. P. dos Reis Velloso.

Ao interpretar a oportunidade histórica que a seu tempo e a seu ver teria sido aproveitada pelo Brasil nos anos 70, através do II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND, o ex-Ministro a comparou com o romance “Earthly Powers”, de Anthony Burgess. Nele, o personagem principal tenta salvar a própria vida, após ser prisioneiro da Gestapo quando estourou a 2ª guerra mundial, conseguindo chegar a Paris, ao fim de sucessivas viagens de trem, através da Itália. Diz Velloso: “Foi, em certo sentido, como se tivéssemos tomado o último trem para Paris” (Velloso, J. P. em seu livro “O último trem para Paris”, 1986).

Mas é hora de voltarmos à oportunidade estratégica sugerida na posse da Ministra Simone.

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Planejamento - O último trem para o Brasil

 O tempo está se esgotando para aquele Brasil concebido e sonhado na Constituição de 1988. Consta lá em seu Art 3º que os objetivos fundamentais eram então os de se construir:

“(...)uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Passados 35 anos, chegamos a um país em crise social e estagnação socioeconômica, com suas instituições democráticas severamente testadas ao limite da ruptura como acabamos de assistir no oito de janeiro.

Neste contexto foi alentador o discurso de Simone Tebet ao tomar posse no Ministério do Planejamento. No novo governo, Tebet juntamente com Alckmin tipicamente representam na política o “centro democrático”, e quanto à base social, trazem o potencial de agregar interesses empresariais, de classes produtoras e financeiras, da indústria e agronegócio. Pelos Ministérios que dirigirão, respectivamente os do Planejamento e do Desenvolvimento, estão em posições forçosamente estratégicas. Terão que intermediar respostas do governo a desafios inescapáveis e inadiáveis quanto à própria sobrevivência do país, se considerados os propósitos de 1988. Não por acaso, o Planejamento fora elevado a norma constitucional naquela mesma ocasião, mediante o seu artigo 174.

Quanto ao Planejamento, pontuou Tebet:

O Orçamento  brasileiro está direta e indiretamente presente na vida de todos os quase 210 milhões de brasileiros e brasileiras. O Planejamento fala do futuro do Brasil que queremos ser”. 

“(...) Vamos trabalhar juntos numa pasta e numa área que, de acordo com a determinação, não só do presidente Lula, mas da determinação do nosso também ministro da Casa Civil, Rui Costa, teremos que trabalhar muito no Planejamento a médio e longo prazo(...)”. 

“(...) o que me moveu foi a certeza de que tudo o que nos une é infinitamente maior do que aquilo nos separa: a defesa da democracia e o sonho da cidadania para todos os brasileiros. Isso somente é possível com um crescimento econômico duradouro e sustentável que gere emprego e renda para os brasileiros e que tire o Brasil do mapa da fome(...)”

“(...)vamos tirar do papel a formulação de um plano nacional de desenvolvimento regional. É preciso atacar as desigualdades sociais e regionais que tanto nos envergonham(...)”.

“(...)Estamos remontando este Ministério, que será composto por uma equipe com visão interdisciplinar, compreensiva e horizontal da realidade. Ainda bem que, apesar de todos os percalços, o corpo técnico efetivo e experiente permanece, com o apoio fundamental do IPEA e do IBGE, porque, um país que não conhece sua realidade não tem como enfrentar seus problemas. Teremos, portanto, os melhores diagnósticos, para indicar os caminhos mais apropriados para alterar a triste realidade de sermos um dos países mais desiguais de todo o planeta”.

“(...)Esse diagnóstico será traçado com participação da sociedade civil, por meio de audiências públicas, que é a partir de onde, também e por consequência, construiremos o orçamento público”.

Não bastasse o contexto de crise social, estagnação e ameaça às instituições democráticas, análises dos especialistas quanto ao cenário econômico internacional para 2023 não sugerem qualquer otimismo. Prosseguem a guerra na Ucrânia e a pandemia do COVID ainda fora de controle. O desemprego avança pela utilização de forma maciça das novas tecnologias, pela substituição dos meios de produção por robôs ou softwares inteligentes, pela transformação dos novos modelos de negócios digitais. O desemprego também ocorre pelo crescimento da concentração e centralização do capital nos processos de fusões e aquisições, pela crescente financeirização da economia e ainda, pela flexibilização nas relações de trabalho. Segundo alguns autores poderia estar ocorrendo uma grande acumulação de capital, sobretudo no mercado financeiro, demonstrando que a nova arquitetura do capitalismo global estaria caminhando para uma junção da economia digital com o capital aplicado no mercado financeiro global, integrantes da grande transformação em curso para um “capitalismo da informação”[1].  

Por conseguinte, e apenas para destacar uma das dimensões da problemática brasileira, este é o cenário complexo para a reindustrialização da sua economia, conforme defendida inclusive por vozes de entidades patronais, como a do presidente da CNI, Robson Braga, em artigo recente (O Globo, 20/12/2022). Em suas palavras:

“(...) Partimos da premissa de que não há país forte sem uma indústria competitiva e inovadora. Seu fortalecimento, portanto, é crucial para a retomada do crescimento econômico [duradouro e sustentável] e para a geração de oportunidades de trabalho e renda para todos os brasileiros e brasileiras”.

Tebet – a missão

Nas últimas três décadas houve um esvaziamento da cultura técnica e das instituições de Planejamento no Brasil, construída ao longo de cinco décadas, desde os anos 30 do século passado. Mesmo a tentativa de reconstrução pós 2003, nos governos do PT, evidenciou um déficit conceitual e metodológico, por tomar como ponto de partida o PPA – Plano Plurianual, que apesar do nome trata-se de um Orçamento para 5 anos, inclusive restrito ao Governo Federal.

O planejamento abrangente e integrado das atividades econômicas dos setores público e privado no Brasil foi alçado a princípio constitucional desde 1988, primeira vez na história em que foi mencionado nas constituições brasileiras. Através do artigo 174 e seu parágrafo 1º, está organicamente inserido no "Capítulo I, Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica", que por sua vez abre o "Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira".

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.

§1º a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. (BRASIL, 1988).

Tal dispositivo ainda permanece na Constituição sem jamais ter sido aplicado.

Mesmo até quase a extinção do Ministério do Planejamento pelo governo anterior, não era sequer referido na sua página de internet (só o foi em seus extertores), onde se fazia referência apenas ao artigo 165, alusivo aos orçamentos, âmbito muito mais restrito portanto, integrante de outro Título, de número VI, "Da Tributação e do Orçamento", em seu "Capítulo II, Das Finanças Públicas". O pouco que se "fez" no Brasil sob a denominação de "Plano" foi regido por este artigo 165, que conceitual e metodologicamente nada tem a ver com o desenvolvimento institucional da concertação entre governo e setor privado, com a interação estratégica entre players relevantes, ou ainda com a produção de informações socioeconômicas consistentes entre si como base da negociação política, elementos essenciais de um planejamento indicativo contemporâneo.

Até agora Tebet aparentemente só tomou conhecimento do Art 165 da Constituição, que trata dos Orçamentos, inclusive do PPA, como se viu, conceito restrito de finanças públicas. Mas já nos destaques de suas palavras mostrados acima, pode-se antever algo mais. Se ela puser em prática o que pretende, vai chegar, pelos desafios da prática, ao conceito de Planejamento Indicativo previsto no Art 174 da Constituição. O dispositivo constitucional já está pronto! É bola quicando na porta do gol!

A questão democrática no planejamento                           

O planejamento tem a vocação de criar representações das demandas, explicitar intenções, revelar conflitos entre elas e os custos envolvidos, lidando assim com a diversidade social. É fato que na sua versão tecnocrática ele faz o oposto disto, alijando temas, encobrindo conflitos e dando suporte a "não decisões".

A difusão de informação, a transparência e horizontalização dos processos decisórios, pode ter consequências sociais e políticas altamente positivas no sentido dos avanços de uma institucionalidade democrática. Todavia, com base na experiência histórica, pode-se arguir sobre a eventual captura do planejamento por um saber tecnocrático e um estatismo autoritário. Há de fato uma inegável ambivalência e um inerente risco daquela captura. Nas décadas recentes, a idéia do planejamento então ficou sendo identificada, em muitos casos com fundadas razões, ao despotismo, ao estatismo, ou a um saber tecnocrático. O atraso metodológico e a exaustão de processos tradicionais que já não respondiam às condições do mundo atual puseram aquela idéia na defensiva. No Brasil, além disso, há que se somar a desarticulação das equipes técnicas, a dispersão dos quadros especializados e o predomínio de uma cultura imediatista na administração pública, como fatores de absoluto vazio de qualquer debate específico sobre o tema. Perdeu-se totalmente a cultura do planejamento, prevalecendo o imediatismo e a improvisação. E nas orientações governamentais - do "apagão" de energia ao "trem bala" - a superposição de neoliberalismo, voluntarismo e dirigismo sem plano.

É certo que os brasileiros até sabem fazer o mapeamento das grandes questões nacionais. Mas na hora de se apontarem as vias de solução, as idéias de "Plano" e "Estratégia", quando aparecem, o fazem de forma muito embrionária ou como panacéia, quando não associadas às condições prévias de um grande "consenso social" e de "reforma do Estado". Sucede que a metodologia deve tratar, antes de tudo, de um ambiente cuja regra é a da competição e do conflito, e sob a ótica de um ator especial, o governo, a quem cabe a iniciativa do desenvolvimento institucional no seu campo de atuação. Daí que a metodologia deve conjugar as dimensões técnica e política, a interação entre informação e negociação, em aprimoramento contínuo do ambiente institucional que lhe é próprio.

O último trem - o planejamento face às relações Estado - sociedade no Brasil de hoje

O Brasil se depara esquematicamente com duas tendências alternativas quanto às relações Estado - sociedade.

Ou se consolida como nação, e para isso tem que "trocar o pneu com o carro em movimento" (democracia, crescimento econômico, inclusão social) onde o permanente é a mudança, guardando autonomia sobre o seu próprio destino;

Ou vira "Mercadolândia" (a nação virando apenas um território de mercado), o "salve-se quem puder", abrindo mão da autonomia.

No primeiro caso, a grande tentação tem sido as soluções autoritárias de todo tipo, escalonando-se as tarefas históricas ao invés de enfrentá-las simultaneamente: ditadura para "salvar" a democracia; "primeiro crescer o bolo para depois distribuir"; instrumentalizar a democracia para "conduzir" o povo (populismos); em aversão e desconfiança face às instituições democráticas.

No segundo caso há uma crença de que o mercado livre garante tudo o mais, a começar pelas liberdades democráticas: democracia e livre mercado vistos como uma unidade; aversão e desconfiança quanto à atuação do Estado.

O século XX demonstrou que a economia brasileira, sob o protagonismo do Estado nacional, fez valer as oportunidades abertas pelos constrangimentos externos. Das crises do mercado do café aos choques dos anos 70, passando pela crise de 29 e duas guerras mundiais, o Brasil saiu de uma economia primário-exportadora para ter nos anos 80 um parque industrial completo.

Mas restou uma enorme agenda socioeconômica e político-institucional em atraso.

Soluções autoritárias de passado recente não teriam sido originalidade nossa e são vistas por vários autores como sendo características dos países que foram retardatários no sistema capitalista (Alemanha, Japão, Rússia, exemplarmente).

Ademais o desencadeamento explosivo de novas e sucessivas demandas sociais, suscitadas pelo próprio desenvolvimento socioeconômico, e pela abertura dos novos canais de participação popular, de vocalização das demandas, de emergência da cidadania, tudo isso trazido por instituições democráticas em construção, de certo modo trazem o risco dessas instituições se tornarem vítimas de seu próprio sucesso.

Mas se há alguma chance de se enfrentar com êxito a simultaneidade dos atrasos daquela agenda, certamente a chance não está na entrega da autonomia do país, mas justamente no aproveitamento consciente das novas oportunidades abertas pelas rápidas transformações do mundo contemporâneo, da economia internacionalizada à geopolítica, o que reporia o Estado nacional como grande protagonista.

Como enfrentar a agenda sem o Planejamento?

O tempo urge. Ao interpretar a oportunidade histórica que a seu tempo e a seu ver teria sido aproveitada pelo Brasil nos anos 70, através do II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND, o ex-Ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso a comparou com o romance “Earthly Powers”, de Anthony Burgess. Nele, o personagem principal tenta salvar a própria vida, após ser prisioneiro da Gestapo quando estourou a 2ª guerra mundial, conseguindo chegar a Paris, ao fim de sucessivas viagens de trem, através da Itália. Diz Velloso: “Foi, em certo sentido, como se tivéssemos tomado o último trem para Paris” (Velloso, J. P. em seu livro “O último trem para Paris”, 1986).

Parafraseando Velloso,  a oportunidade de agora talvez seja a do último trem para o Brasil.

*Alfredo Maciel da Silveira é Doutor em Economia, IE-UFRJ e MSc. Eng. de Produção, Coppe-UFRJ. É um dos editores do Blog "Democracia e Socialismo"

[1] Tais elementos de cenário - economia digital, tecnologia, mercado de trabalho -  seguem o artigo de Durval Correa Meirelles, "Cenário Econômico, Financeiro e Empresarial Global e a volta da estagflação na economia brasileira" , Maio/2022, publicado neste Blog.

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Tebet tem que querer, e Lula tem que deixar! E estas 2 condições tem que ocorrer nesta sequência... Tomara que ocorram! Mas os trens no Brasil não dão muito certo.