Acho que a
tragédia daquele domingo só reforça o que pretendo sugerir com aquele título,
que parafraseia um outro, "O último trem para Paris", de um livro de
autoria do ex- Ministro do Planejamento J. P. dos Reis Velloso.
Ao interpretar a
oportunidade histórica que a seu tempo e a seu ver teria sido aproveitada pelo
Brasil nos anos 70, através do II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND, o
ex-Ministro a comparou com o romance “Earthly Powers”, de Anthony Burgess.
Nele, o personagem principal tenta salvar a própria vida, após ser prisioneiro
da Gestapo quando estourou a 2ª guerra mundial, conseguindo chegar a Paris, ao
fim de sucessivas viagens de trem, através da Itália. Diz Velloso: “Foi, em
certo sentido, como se tivéssemos tomado o último trem para Paris” (Velloso, J.
P. em seu livro “O último trem para Paris”, 1986).
Mas é hora de voltarmos à oportunidade estratégica sugerida na posse da Ministra Simone.
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Planejamento - O último trem para o Brasil
O tempo
está se esgotando para aquele Brasil concebido e sonhado na Constituição de
1988. Consta lá em seu Art 3º que os objetivos fundamentais eram então os de se
construir:
“(...)uma
sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional;
erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor
idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Passados 35
anos, chegamos a um país em crise social e estagnação socioeconômica, com suas
instituições democráticas severamente testadas ao limite da ruptura como
acabamos de assistir no oito de janeiro.
Neste contexto
foi alentador o discurso de Simone Tebet ao tomar posse no Ministério do
Planejamento. No novo governo, Tebet juntamente com Alckmin tipicamente
representam na política o “centro democrático”, e quanto à base social, trazem
o potencial de agregar interesses empresariais, de classes produtoras e
financeiras, da indústria e agronegócio. Pelos Ministérios que dirigirão,
respectivamente os do Planejamento e do Desenvolvimento, estão em posições
forçosamente estratégicas. Terão que intermediar respostas do governo a
desafios inescapáveis e inadiáveis quanto à própria sobrevivência do país, se
considerados os propósitos de 1988. Não por acaso, o Planejamento fora elevado
a norma constitucional naquela mesma ocasião, mediante o seu artigo 174.
Quanto ao
Planejamento, pontuou Tebet:
“O
Orçamento brasileiro está direta e indiretamente presente na vida de
todos os quase 210 milhões de brasileiros e brasileiras. O Planejamento fala do
futuro do Brasil que queremos ser”.
“(...) Vamos
trabalhar juntos numa pasta e numa área que, de acordo com a determinação, não
só do presidente Lula, mas da determinação do nosso também ministro da Casa
Civil, Rui Costa, teremos que trabalhar muito no Planejamento a médio e longo
prazo(...)”.
“(...) o
que me moveu foi a certeza de que tudo o que nos une é infinitamente maior do
que aquilo nos separa: a defesa da democracia e o sonho da cidadania para todos
os brasileiros. Isso somente é possível com um crescimento econômico duradouro
e sustentável que gere emprego e renda para os brasileiros e que tire o Brasil
do mapa da fome(...)”
“(...)vamos
tirar do papel a formulação de um plano nacional de desenvolvimento regional. É
preciso atacar as desigualdades sociais e regionais que tanto nos envergonham(...)”.
“(...)Estamos
remontando este Ministério, que será composto por uma equipe com visão
interdisciplinar, compreensiva e horizontal da realidade. Ainda bem que, apesar
de todos os percalços, o corpo técnico efetivo e experiente permanece, com o
apoio fundamental do IPEA e do IBGE, porque, um país que não conhece sua
realidade não tem como enfrentar seus problemas. Teremos, portanto, os melhores
diagnósticos, para indicar os caminhos mais apropriados para alterar a triste
realidade de sermos um dos países mais desiguais de todo o planeta”.
“(...)Esse
diagnóstico será traçado com participação da sociedade civil, por meio de
audiências públicas, que é a partir de onde, também e por consequência,
construiremos o orçamento público”.
Não bastasse o
contexto de crise social, estagnação e ameaça às instituições democráticas,
análises dos especialistas quanto ao cenário econômico internacional para 2023
não sugerem qualquer otimismo. Prosseguem a guerra na Ucrânia e a pandemia do
COVID ainda fora de controle. O desemprego avança pela utilização de forma
maciça das novas tecnologias, pela substituição dos meios de produção por robôs
ou softwares inteligentes, pela transformação dos novos modelos de negócios
digitais. O desemprego também ocorre pelo crescimento da concentração e centralização
do capital nos processos de fusões e aquisições, pela crescente financeirização
da economia e ainda, pela flexibilização nas relações de trabalho. Segundo
alguns autores poderia estar ocorrendo uma grande acumulação de capital,
sobretudo no mercado financeiro, demonstrando que a nova arquitetura do
capitalismo global estaria caminhando para uma junção da economia digital com o
capital aplicado no mercado financeiro global, integrantes da grande
transformação em curso para um “capitalismo da informação”[1].
Por conseguinte,
e apenas para destacar uma das dimensões da problemática brasileira, este é o
cenário complexo para a reindustrialização da sua economia, conforme defendida
inclusive por vozes de entidades patronais, como a do presidente da CNI, Robson
Braga, em artigo recente (O Globo, 20/12/2022). Em suas palavras:
“(...) Partimos
da premissa de que não há país forte sem uma indústria competitiva e inovadora.
Seu fortalecimento, portanto, é crucial para a retomada do crescimento
econômico [duradouro e sustentável] e para a geração de
oportunidades de trabalho e renda para todos os brasileiros e brasileiras”.
Tebet – a missão
Nas últimas três
décadas houve um esvaziamento da cultura técnica e das instituições de
Planejamento no Brasil, construída ao longo de cinco décadas, desde os anos 30
do século passado. Mesmo a tentativa de reconstrução pós 2003, nos governos do
PT, evidenciou um déficit conceitual e metodológico, por tomar como ponto de
partida o PPA – Plano Plurianual, que apesar do nome trata-se de um Orçamento
para 5 anos, inclusive restrito ao Governo Federal.
O planejamento
abrangente e integrado das atividades econômicas dos setores público e privado
no Brasil foi alçado a princípio constitucional desde 1988, primeira vez na
história em que foi mencionado nas constituições brasileiras. Através do artigo
174 e seu parágrafo 1º, está organicamente inserido no "Capítulo I, Dos
Princípios Gerais da Atividade Econômica", que por sua vez abre o
"Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira".
Art. 174. Como
agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na
forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este
determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
§1º a lei estabelecerá
as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado,
o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de
desenvolvimento. (BRASIL, 1988).
Tal dispositivo
ainda permanece na Constituição sem jamais ter sido aplicado.
Mesmo até quase
a extinção do Ministério do Planejamento pelo governo anterior, não era sequer
referido na sua página de internet (só o foi em seus extertores), onde se fazia
referência apenas ao artigo 165, alusivo aos orçamentos, âmbito muito mais
restrito portanto, integrante de outro Título, de número VI, "Da
Tributação e do Orçamento", em seu "Capítulo II, Das Finanças
Públicas". O pouco que se "fez" no Brasil sob a denominação de
"Plano" foi regido por este artigo 165, que conceitual e metodologicamente
nada tem a ver com o desenvolvimento institucional da concertação entre governo
e setor privado, com a interação estratégica entre players relevantes, ou ainda
com a produção de informações socioeconômicas consistentes entre si como base da
negociação política, elementos essenciais de um planejamento indicativo
contemporâneo.
Até agora Tebet
aparentemente só tomou conhecimento do Art 165 da Constituição, que trata dos
Orçamentos, inclusive do PPA, como se viu, conceito restrito de finanças
públicas. Mas já nos destaques de suas palavras mostrados acima, pode-se
antever algo mais. Se ela puser em prática o que pretende, vai chegar, pelos
desafios da prática, ao conceito de Planejamento Indicativo previsto no Art 174
da Constituição. O dispositivo constitucional já está pronto! É bola quicando
na porta do gol!
A questão
democrática no planejamento
O planejamento
tem a vocação de criar representações das demandas, explicitar intenções,
revelar conflitos entre elas e os custos envolvidos, lidando assim com a
diversidade social. É fato que na sua versão tecnocrática ele faz o oposto
disto, alijando temas, encobrindo conflitos e dando suporte a "não
decisões".
A difusão de
informação, a transparência e horizontalização dos processos decisórios, pode
ter consequências sociais e políticas altamente positivas no sentido dos
avanços de uma institucionalidade democrática. Todavia, com base na experiência
histórica, pode-se arguir sobre a eventual captura do planejamento por um saber
tecnocrático e um estatismo autoritário. Há de fato uma inegável ambivalência e
um inerente risco daquela captura. Nas décadas recentes, a idéia do
planejamento então ficou sendo identificada, em muitos casos com fundadas
razões, ao despotismo, ao estatismo, ou a um saber tecnocrático. O atraso
metodológico e a exaustão de processos tradicionais que já não respondiam às
condições do mundo atual puseram aquela idéia na defensiva. No Brasil, além
disso, há que se somar a desarticulação das equipes técnicas, a dispersão dos
quadros especializados e o predomínio de uma cultura imediatista na
administração pública, como fatores de absoluto vazio de qualquer debate
específico sobre o tema. Perdeu-se totalmente a cultura do planejamento,
prevalecendo o imediatismo e a improvisação. E nas orientações governamentais -
do "apagão" de energia ao "trem bala" - a superposição de
neoliberalismo, voluntarismo e dirigismo sem plano.
É certo que os
brasileiros até sabem fazer o mapeamento das grandes questões nacionais. Mas na
hora de se apontarem as vias de solução, as idéias de "Plano" e
"Estratégia", quando aparecem, o fazem de forma muito embrionária ou
como panacéia, quando não associadas às condições prévias de um grande
"consenso social" e de "reforma do Estado". Sucede que a
metodologia deve tratar, antes de tudo, de um ambiente cuja regra é a da
competição e do conflito, e sob a ótica de um ator especial, o governo, a quem
cabe a iniciativa do desenvolvimento institucional no seu campo de atuação. Daí
que a metodologia deve conjugar as dimensões técnica e política, a interação
entre informação e negociação, em aprimoramento contínuo do ambiente
institucional que lhe é próprio.
O último trem -
o planejamento face às relações Estado - sociedade no Brasil de hoje
O Brasil se
depara esquematicamente com duas tendências alternativas quanto às relações
Estado - sociedade.
Ou se consolida
como nação, e para isso tem que "trocar o pneu com o carro em
movimento" (democracia, crescimento econômico, inclusão social) onde o permanente
é a mudança, guardando autonomia sobre o seu próprio destino;
Ou vira
"Mercadolândia" (a nação virando apenas um território de mercado), o
"salve-se quem puder", abrindo mão da autonomia.
No primeiro
caso, a grande tentação tem sido as soluções autoritárias de todo tipo,
escalonando-se as tarefas históricas ao invés de enfrentá-las simultaneamente:
ditadura para "salvar" a democracia; "primeiro crescer o bolo
para depois distribuir"; instrumentalizar a democracia para "conduzir"
o povo (populismos); em aversão e desconfiança face às instituições
democráticas.
No segundo caso
há uma crença de que o mercado livre garante tudo o mais, a começar pelas
liberdades democráticas: democracia e livre mercado vistos como uma unidade;
aversão e desconfiança quanto à atuação do Estado.
O século XX
demonstrou que a economia brasileira, sob o protagonismo do Estado nacional,
fez valer as oportunidades abertas pelos constrangimentos externos. Das crises
do mercado do café aos choques dos anos 70, passando pela crise de 29 e duas
guerras mundiais, o Brasil saiu de uma economia primário-exportadora para ter
nos anos 80 um parque industrial completo.
Mas restou uma
enorme agenda socioeconômica e político-institucional em atraso.
Soluções
autoritárias de passado recente não teriam sido originalidade nossa e são
vistas por vários autores como sendo características dos países que foram
retardatários no sistema capitalista (Alemanha, Japão, Rússia, exemplarmente).
Ademais o
desencadeamento explosivo de novas e sucessivas demandas sociais, suscitadas
pelo próprio desenvolvimento socioeconômico, e pela abertura dos novos canais
de participação popular, de vocalização das demandas, de emergência da
cidadania, tudo isso trazido por instituições democráticas em construção, de
certo modo trazem o risco dessas instituições se tornarem vítimas de seu
próprio sucesso.
Mas se há alguma
chance de se enfrentar com êxito a simultaneidade dos atrasos daquela agenda,
certamente a chance não está na entrega da autonomia do país, mas justamente no
aproveitamento consciente das novas oportunidades abertas pelas rápidas transformações
do mundo contemporâneo, da economia internacionalizada à geopolítica, o que
reporia o Estado nacional como grande protagonista.
Como enfrentar a
agenda sem o Planejamento?
O tempo urge. Ao
interpretar a oportunidade histórica que a seu tempo e a seu ver teria sido
aproveitada pelo Brasil nos anos 70, através do II Plano Nacional de
Desenvolvimento – II PND, o ex-Ministro do Planejamento João Paulo dos Reis
Velloso a comparou com o romance “Earthly Powers”, de Anthony Burgess. Nele, o
personagem principal tenta salvar a própria vida, após ser prisioneiro da
Gestapo quando estourou a 2ª guerra mundial, conseguindo chegar a Paris, ao fim
de sucessivas viagens de trem, através da Itália. Diz Velloso: “Foi, em
certo sentido, como se tivéssemos tomado o último trem para Paris”
(Velloso, J. P. em seu livro “O último trem para Paris”, 1986).
Parafraseando Velloso, a oportunidade de agora talvez seja a do último trem para o Brasil.
*Alfredo Maciel da Silveira é Doutor
em Economia, IE-UFRJ e MSc. Eng. de Produção, Coppe-UFRJ. É um dos editores
do Blog "Democracia e Socialismo"
[1] Tais
elementos de cenário - economia digital, tecnologia, mercado de trabalho
- seguem o artigo de Durval Correa Meirelles, "Cenário Econômico, Financeiro e Empresarial Global e a
volta da estagflação na economia brasileira" , Maio/2022,
publicado neste Blog.
Um comentário:
Tebet tem que querer, e Lula tem que deixar! E estas 2 condições tem que ocorrer nesta sequência... Tomara que ocorram! Mas os trens no Brasil não dão muito certo.
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