Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Tumulto bolsonarista é o doloroso retrato
do poder invisível legado pela ditadura e mantido na ingenuidade de uma
tolerância imprudente dos que se omitiram em nome da democracia
O tumulto insurrecional da turba
bolsonarista, de 8 de janeiro, não se explica por si mesmo como ação de
baderneiros pura e simplesmente. Há por trás dela uma trama sabida, mais do que
óbvia, que vem sendo tecida desde muito antes das eleições de 2018.
O tumulto tem, também, motivações subjetivas
de categoria social com mentalidade identificável e causas sociologicamente
explicáveis.
À primeira vista os terroristas, inclusive
os de aluguel, foram e têm sido manipulados e têm estado disponíveis para a
baderna por meio da ação de agentes de visibilidade notória em decorrência de
fatores de classe social. São os da baixa classe média raivosa, que vem
acumulando frustrações sociais, manipuladas para se expressarem como
frustrações políticas e ódio ideológico.
De um lado, em decorrência das crescentes limitações da possibilidade de ascensão social num cenário de crise, incerteza e medo, de desemprego intermitente e reemprego cada vez mais demorado.
Cenário que se reflete nas dificuldades de
sobrevivência de pequenas e médias empresas de comércio e de serviços. Uma
grande crise de capitalismo sem destino próprio, cujos empresários expressam
essa marginalidade econômica e sem autonomia. Politicamente administrado, como
se viu no governo que acabou, com base em teoria imprópria, estranha à realidade
e às limitações da economia do país.
Um capitalismo de cópia malfeita, que não
veio acompanhada da bula sobre os efeitos colaterais e a medicação apropriada
para resolver e superar os problemas do desencontro entre o teórico e o real.
Paralelamente ao real fantasioso de um
poder prepotente que governa contra o que a sociedade é e em nome do que não é
nem pode ser, uma outra sociedade brasileira, legítima e verdadeira, dos que
ficaram à margem da História, vem se desenvolvendo, lenta e sofridamente, ao longo
dos séculos.
Povos indígenas, pretos de diferentes
etnias, mestiços dos vários encontros raciais e étnicos e até mestiços de
brancos com brancos, que nos fazem o que somos, mulheres de diferentes idades e
condições sociais, operários e trabalhadores rurais e mesmo filhos da
diversificação de identidades que surgiram com a originalidade própria da
modernidade, ganharam perfil e identidade.
Todos esses seres humanos historicamente
marginalizados tornaram-se visíveis ao abrigo da cultura alternativa e da sociedade
alternativa que nela se expressa, durante a ditadura militar e sua repressão em
nome de uma identidade brasileira de quartel, sem passado nem futuro.
Os movimentos sociais deram-lhe vitalidade
social, mas também política. Tiveram o discernimento de agruparem-se sobretudo
num novo e diferente partido, o dos Trabalhadores. E, afinal, elegeram e
reelegeram um operário como presidente da República. Os grupos e as categorias
sociais com mais discernimento, como empresários, intelectuais, artistas e religiosos
de diferentes confissões, deram-lhe a mediação das conexões de sentido, as de
um projeto pluralista e democrático de nação.
E, agora, numa reação explícita e
politicamente construtiva contra as estreitezas e intolerâncias do legado
ditatorial, reagruparam-se numa Frente Democrática e elegeram o operário,
novamente, presidente da República. A composição do governo expõe de modo
apoteótico a pluralidade dos democraticamente simples e da gestão pluralista do
destino do povo.
A epopeia cívica do dia 1º de janeiro
mostrou ao mundo a cara de um novo Brasil, o verdadeiro, de uma nova concepção
de poder, de uma nova e civilizada concepção de desenvolvimento econômico com
desenvolvimento social.
A baixa classe média raivosa que no dia 8
invadiu os recintos dos poderes do Estado democrático, o Palácio do Planalto, o
Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, moveu-se, perambulou, depredou
em nome da ignorância. Aquilo foi o doloroso retrato do que é o poder invisível
legado pela ditadura e mantido na ingenuidade de uma tolerância imprudente dos
que se omitiram em nome da democracia.
O patrimônio da memória brasileira e da
identidade brasileira, bens culturais da nação, obras de arte, objetos
históricos, móveis e instalações foram mutilados e mesmo destruídos. Um
relógio, trazido por Dom João, em 1808, foi destroçado.
As imagens permitiram testemunhar ao vivo e
em cores cada gesto, cada ato da ignorância metamorfoseada em retorno de um
poder, o poder bolsonarista, o outro lado do espetáculo de barbárie da reunião
ministerial de 22 de abril de 2020.
A baderna insana que a nação viu é crime
conexo com os crimes contra a pátria sintetizados na mentalidade exposta
naquela reunião e no conjunto de atos antissociais que marcaram o governo
recém-encerrado. Mais uma vez a pátria está em perigo.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
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