Folha de S. Paulo
Agora também tecnológico, sobrevoa cabeças
patronais
Uma palavra abstrusa atravessa os tempos do
ofício jornalístico: passaralho. Nada elegante, mas precisa na referência
vulgar à instabilidade da profissão. Desde meio século até hoje, o novato ou o
veterano das redações sabe que o voo dessa ave improvável significa demissão
súbita e coletiva, por motivos os mais variados. É o que tem acontecido
recentemente em grandes organizações de mídia.
Se antes era apenas a decisão arbitrária do mandachuva, agora é também um dos efeitos de transformação no modelo empresarial que acompanham mudanças profundas na prática da informação pública. Primeiro vale observar que os grandes veículos (impressos, televisivos e digitais) parecem ter-se convertido ao modelo CNN: excesso de informação, sem base interpretativa capaz de articular a dispersão dos eventos noticiáveis ao real-histórico.
Numa analogia, a metástase biológica,
entendida como proliferação patológica das células no câncer, pode dar uma
medida do fenômeno da desinformação: a metástase informativa é a fragmentação
dos fatos pela multiplicação irrelevante da notícia. Na microinformação,
notícia deixa de ser projeção verossímil de um fato em função de um impulso
individual, que varia do gesto bem-humorado ao boato rancoroso. Senão o surto
maquinal do robô, já entre nós, precarizando a mão humana.
Essa "qualquer coisa noticiável"
não é o mesmo objeto-mercadoria que faz viver o jornalismo. A modernidade da imprensa
caracteriza-se por uma noticiabilidade historicamente comprometida com a
sociedade civil, isto é, com a organização liberal da produção e da política.
Tornar transparentes decisões do Estado, inserir o diverso na ordem dos
acontecimentos, debater contradições de classe, pressionar governos são
imperativos do jornalismo, que constitui a outra face da moeda democrática.
Isso sempre se fez, bem ou mal. Nesta
última trilha caminha o jornalismo capaz de vender mentiras, supondo ser esse o
gosto de sua audiência. O império norte-americano de Rupert Murdoch é
exemplo recente. E são bastante notórios os casos brasileiros, numa conjuntura
em que políticos são eleitos e mantidos nos cargos exatamente porque são
mentirosos. É outra realidade, paralela, instalada pelo devir artificial do
mundo. As redes sociais são o nariz de um Pinóquio catastrófico.
Trevas digitais tentam apagar o jornalismo.
O passaralho, agora também tecnológico, sobrevoa cabeças patronais. Para quem
mídia é só um negócio a mais, talvez pouco importe. Jornalismo, porém, é algo
maior do que isso. Irá para onde vai (se for) a vida democrática. É hora então
de pesquisa e de inédita parceria séria com escolas para um compromisso com
vivas formas de existência além das redes.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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