O Estado de S. Paulo
O que se deve, agora, é perseguir uma institucionalidade que garanta a melhor oferta de serviços à população, deixando de lado interesses menores
A discussão recente sobre o marco legal do
saneamento básico no País é de grande utilidade para identificarmos um novo
papel estatal na realidade brasileira – já não apenas o de construtor, mas
também de organizador de ações econômicas e de garantia de serviços básicos e
de qualidade à população.
A Lei n.º 14.026 (15/7/2020) instituiu no
Brasil novas regras para o setor de saneamento, considerado um fator-chave para
a saúde dos cidadãos e para a própria consciência de cidadania.
No início de abril deste ano, no entanto, o governo Lula publicou dois novos decretos (n.º 1.466 e n.º 1.467) que alteram aspectos expressivos do marco legal aprovado no governo anterior. No caso das parcerias público-privadas (PPPs), uma legislação recente reduziu as incertezas sobre o tamanho dessas parcerias ao eliminar um limite artificial de 25% da receita do projeto. No âmbito do julgamento das licitações, o reforço à modicidade tarifária e ao atingimento das metas de universalização, em detrimento do valor da outorga, foram favoráveis ao setor. Mas os ecos do velho Estado promoveram desvios nos ouvidos do novo governo e os decretos foram além.
Embora existam aspectos positivos, os
textos têm dois pontos que reduzem significativamente a possibilidade de
melhora nos serviços de saneamento que estava prevista no novo marco.
O primeiro relaciona-se ao espaço hoje
ocupado por empresas estaduais. A lei do novo Marco do Saneamento definiu
regras mais duras para a continuidade dos seus serviços nas localidades e
estabeleceu a necessidade de comprovação da capacidade econômico-financeira de
atingir os 99% de atendimento dos serviços de água e 90% do atendimento e
tratamento dos serviços de esgoto, até 2033. Mais: os contratos de programa
entre as empresas e os municípios não passaram por processos licitatórios
prévios e não contemplavam as metas especificadas pelo novo marco para todos os
municípios sob sua operação.
Os prazos e as comprovações demandados pelo
Decreto n.º 10.710/2021 para validar as concessões em andamento não foram
cumpridos por parte expressiva dos municípios: 1.106. Ou seja, quase 20% das
5.568 localidades brasileiras, onde estima-se uma população de quase 30 milhões
de pessoas. Também: oito companhias estaduais de saneamento não apresentaram a
documentação exigida e uma foi reprovada pela respectiva agência subnacional.
As reprovações, portanto, impedem o recebimento de verbas federais para obras.
Logicamente, uma clara indicação de que as
metas de universalização do tratamento de esgoto e do abastecimento de água
potável não serão todas alcançadas dentro do prazo proposto inicialmente – e
que o atual governo pretende manter –, que é 2033.
O texto do novo decreto (11.466/23) alterou
não somente os prazos, mas também as condições para a apresentação dos
requisitos mínimos de capacidade econômico-financeira das empresas do setor.
Para as companhias que não haviam apresentado o requerimento da comprovação até
o fim de 2021, estabeleceu-se nova data: o final deste ano. Já as companhias
cujos contratos com os municípios estejam precários e/ou irregulares têm,
agora, até 31/12/2025 para as devidas comprovações. Como consequência, as
companhias de saneamento que antes estavam com contratos irregulares agora
terão um prazo adicional para sua regularização.
O segundo aspecto em debate relaciona-se a
uma questão federativa bastante complexa. Com o novo Marco do Saneamento,
buscou-se fomentar a competição via mercado. A legislação indicou a vedação da
prática de novos contratos de programa, forma tradicionalmente utilizada pelas
empresas estaduais no amparo legal à prestação de serviços de água e esgoto nas
municipalidades.
A mudança promovida pelo decreto de abril
deste ano abriu a possibilidade de que, no caso de microrregiões, aglomerações
urbanas e regiões metropolitanas, fosse constituído arranjo legal para que as
empresas estaduais prestassem serviços de saneamento sem a necessidade de
prévia licitação. Na prática, uma reintrodução do contrato de programa.
Na tentativa de evitar o retrocesso no que
pode ser considerado o maior programa socioambiental do País, a Câmara dos
Deputados aprovou, por 295 votos a 136, o Projeto de Decreto Legislativo n.º
111/2023, que revoga os dois aspectos que favorecem as companhias estaduais de
saneamento nos decretos do mês passado, anteriormente citados. O texto agora
tramitará no Senado.
Vale observar que os dois pontos em debate
retratam o confronto entre as empresas estaduais de saneamento e os novos
players privados, que vieram amadurecendo sua capacidade de prestação de
serviços com o avanço da concessão das incumbências dentro de um regramento
licitatório.
Não que o Estado seja intrinsecamente
ineficiente nem que a iniciativa privada, apenas pela sua natureza, garanta que
a universalização dos serviços que o País tanto almeja seja alcançada. Ao contrário,
o que se deve, agora, é perseguir uma institucionalidade que garanta a melhor
oferta de serviços à população brasileira, garantindo a universalização do
tratamento do esgoto e o acesso à água potável, deixando de lado interesses
menores.
*Economista
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