O Estado de S. Paulo
É ilusão falar na ‘multiplicação dos pães’ do novo IVA, que seria tão bom a ponto de gerar um bolo de recursos adicionais para encher o fundo de desenvolvimento
O pacto federativo está em frangalhos. Uma reforma tributária abrangente depende do sacrifício de diferentes atores e, portanto, do seu convencimento. É melhor avançar por etapas, sendo a primeira a migração do ICMS ao destino, com o fim dos incentivos tributários.
O ICMS é um tributo estadual do gênero valor adicionado (IVA), cobrado na origem e no destino da operação. Há duas questões centrais em jogo no debate sobre a migração do ICMS para o destino, proposta já bastante ousada, custosa e demandante. A primeira é como compensar os Estados que perderão a caneta dos incentivos tributários. A segunda é como evitar que essa compensação simplesmente replique as ineficiências atuais. Por hipótese, se o novo sistema previr uma montanha de mais de duas centenas de bilhões para políticas setoriais, qual terá sido a vantagem do novo IVA, seja dual (federal e subnacional), seja nacional, ou mesmo da minha proposta, de começar pelo ICMS no destino?
Nas principais propostas de IVA que estão
na mesa, a ideia é que os benefícios do ICMS desapareçam, paulatinamente, à
medida que o novo IVA subnacional (junção do ICMS com o ISS, este municipal)
substitua os antigos impostos. Além disso, pretende-se criar um fundo de
desenvolvimento regional com cerca de R$ 50 bilhões. Um erro, pois é preciso
acabar com os incentivos em prazo curto. O fundo de desenvolvimento, por sua
vez, não pode manter a lógica de benefícios pulverizados. Difícil? Sim, mas aí
estaria uma reforma de fato.
Estamos numa situação na qual se aplica o
teorema da impossibilidade de Arrow. É que a soma das preferências individuais
leva à impossibilidade de uma decisão coletiva razoável. Para ter claro, cada
Estado quer segurar o seu quinhão de incentivos, fabricados em cima da alíquota
aplicada na origem. Natural, dada a incerteza, mas péssimo para a coletividade:
menor crescimento econômico; sistema tributário ainda mais complexo; e novos
penduricalhos e debilidades. Quanto ao modelo de governança proposto, espécie
de agência centralizadora a normatizar e a controlar a arrecadação, seria uma
aventura para qualquer Estado. O órgão consistiria numa aberração federativa.
Os governadores teriam de pedir a bênção da agência para cuidar do seu próprio
imposto. Um disparate.
Vejo dois caminhos. O Congresso poderia
desenhar, junto com o Executivo, uma proposta que explicitasse os sacrifícios
individuais: os Estados aceitariam menores compensações; a União encontraria os
fundos para realizá-las; e os setores produtivos contrários à reforma
aceitariam pagar mais imposto, no curto prazo, tendo em vista os ganhos
econômicos futuros decorrentes da simplificação. A outra possibilidade seria avançar
por etapas na reforma tributária. A primeira saída é um sonho de uma noite de
verão no contexto atual. Torço para que essa conjuntura mude, mas estou
pessimista no tema. Afinal, buscase atender a muitos pleitos, no varejo, em
detrimento das soluções no atacado.
Em 2022, quando fui secretário da Fazenda
de São Paulo, propus ao governador Rodrigo Garcia que defendesse a migração do
ICMS para o destino, sem mexer com o ISS num primeiro momento. Em paralelo,
apoiar a junção do PIS e da Cofins, proposta madura.
Por meio de resolução do Senado,
poder-se-ia alterar a dupla alíquota interestadual, de 7% ou 12% (dependendo da
direção do comércio) para 0%, em três anos. Isso requereria um esforço enorme
de articulação política e negociação com os Estados, que teriam de aceitar a
troca dos incentivos por políticas de desenvolvimento com menos recursos e
orientadas a investimentos em infraestrutura. A meu ver, essas políticas teriam
de ser aprovadas de modo colegiado, constar dos Planos Plurianuais dos Estados,
dos municípios e da União, e ser sempre avaliadas (ex ante e ex post).
A articulação dos interesses individuais
numa direção boa para a coletividade demanda liderança central forte no
Congresso e no Executivo. No curto prazo, não nos iludamos, haveria custos para
todos. Na outra margem do Rubicão, aí sim, avistaríamos terra fértil.
Estados exportadores líquidos perderiam
receita, no começo, mas ganhariam, depois, com a redução das distorções
alocativas. Estados mais pobres teriam um novo instrumento de política de desenvolvimento.
A União teria de garantir o dinheiro. É ilusão falar nesta “multiplicação dos
pães” do novo IVA, que seria tão bom a ponto de gerar um bolo de recursos
adicionais para encher o fundo de desenvolvimento. Balela. Essa fatura é da
União.
A “fábula”, como disse o exsecretário da
Receita Everardo Maciel em artigo no Estadão, precisa ser desmontada. Não
existe reforma tributária em que todos ganham e não há custos; que tenha o
condão de resolver todos os problemas com o tal cashback, alíquotas especiais
ou regulamentações posteriores via lei complementar.
Reformas importantes só passam no nosso
Congresso sob a liderança direta do presidente da República. Foi assim na Lei
de Responsabilidade Fiscal, com Fernando Henrique Cardoso, por exemplo. Agora,
o comandante ainda não apontou um caminho, mas o monstrengo já está em
gestação.
*Economista-chefe e sócio da Warren Rena,
foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e o primeiro
diretor-executivo da IFI
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