O Globo
No final da tarde da última terça-feira, a
presidência da Câmara convocou uma sessão extraordinária para colocar em regime
de urgência alguns projetos de lei. Entre eles, havia um especial.
Apresentado pela deputada Dani Cunha (União-RJ)
— filha dele mesmo, Eduardo Cunha —,
o texto torna crime “injuriar, ofender ou discriminar” políticos denunciados ou
condenados em primeira e segunda instância cujos processos não tenham
transitado em julgado (não tenham esgotado todos os recursos).
Também pune bancos e instituições
financeiras que “discriminem” agentes públicos, políticos e seus parentes —
conhecidos como “pessoas politicamente expostas”, ou PEPs.
Apesar da pressa, a urgência não foi sequer votada. O vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP), que comandou a sessão, afirmou haver um acordo de líderes partidários para aprová-lo em votação simbólica, mas alguém roeu a corda. “Tô percebendo que vai ter (votação) nominal, e eu não gostaria de enfrentar.”
Só o fato de alguém achar razoável propor
uma lei assim já deveria ser espantoso, que dirá considerá-la urgente. Mas
parece haver boa chance de o projeto passar quando ninguém estiver prestando
atenção.
Para que não fique dúvida: não se trata de
punir quem imputar crimes a um inocente. Para isso já existem os crimes de
calúnia, injúria ou difamação. A coisa vai além e atinge até a liberdade de
expressão, já que torna crime chamar alguém de corrupto se condenado por
corrupção apenas em primeira e segunda instância.
Além disso, o escrutínio dos bancos nas
contas de políticos e seus parentes ou cônjuges, os PEPs, não é gratuito. Segue
normas do Banco Central e acordos internacionais contra a lavagem de dinheiro
de que o Brasil é signatário. A legislação permite que os bancos até recusem um
PEP como cliente, caso identifiquem um risco muito alto — como o dinheiro ter
origem ilícita.
O objetivo não é apenas combater a
corrupção, mas também o tráfico de drogas, o terrorismo e outros crimes. Nesse
caso, o que os deputados pretendem fazer? Revogar todo esse arcabouço legal
para impedir a terrível discriminação contra essa minoria desfavorecida que são
os políticos?
No ano passado, o Congresso fez algo semelhante,
aprovando uma lei que Jair
Bolsonaro sancionou sem polêmica: o novo estatuto da advocacia, com um
artigo tornando possíveis contratos verbais de prestação de serviços.
Agora, não é mais necessário um advogado
sob investigação comprovar que trabalhou no processo, escreveu pareceres,
participou de reuniões e audiências com juízes. É só dizer que tem um “contrato
verbal” que justifique a dinheirama, e está tudo certo.
Esse dispositivo foi incluído no Projeto de
Lei em novembro de 2020, dois meses depois da etapa da Operação Lava-Jato que
avançou sobre escritórios de advocacia suspeitos de fazer parte de um esquema
de tráfico de influência a partir de contratos falsos com Fecomércio, Sesc e
Senac do Rio de Janeiro.
A lista de alvos era eclética. Ia de Frederick
Wassef a Cristiano
Zanin, que Lula acaba
de indicar para uma vaga no Supremo Tribunal Federal. O processo foi todo
anulado quando a Segunda Turma do STF decidiu que o juiz Marcelo Bretas não
tinha competência legal para tocar o caso.
A nova lei acabou servindo mesmo a Flávio
Bolsonaro (PL-RJ), que não conseguia apresentar provas dos serviços advocatícios
pelos quais dizia ter recebido os R$ 6 milhões usados na compra de sua mansão
em Brasília. Agora, Flávio não precisa se preocupar. Basta dizer que
A Lava-Jato acabou, Lula já ganhou as
eleições, Deltan
Dallagnol (Podemos-PR) já foi cassado e há grandes chances de Sergio Moro (União-PR)
seguir o mesmo caminho. E o argumento da criminalização da política continua
sendo empunhado para desmontar o aparato de combate à corrupção.
Às vezes, a coisa complica. Nesta semana, o
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
foi “desdenunciado” e inocentado por unanimidade pelo STF de uma acusação de
corrupção e lavagem de dinheiro, ao mesmo tempo que protestava contra uma
operação da Polícia Federal que dizia ser movida por perseguição política por
parte do governo Lula.
Claro que são casos diferentes, e cada um tem sua especificidade. O difícil, nestes dias, é achar quem tenha autoridade e coragem para distinguir com clareza a vítima do perseguidor. Afinal, qualquer hora dessas a lei de Dani Cunha é aprovada, e aí irá para a cadeia quem se atrever a dar nomes aos bois.
Nenhum comentário:
Postar um comentário