quarta-feira, 19 de julho de 2023

Vera Magalhães - O vício do cachimbo entorta a boca

O Globo

Depuração do Cadastro Único vira uma arma para fritar Wellington Dias e entregar ministério e a chave do Bolsa Família ao PP

Voltar atrás de medidas eleitoreiras, populistas ou excepcionais é um dos principais desafios das democracias nos tempos de hoje. Lula foi eleito para fazer o contrário do que Jair Bolsonaro fez. E isso inclui desarmar várias bombas que ele deixou no vale-tudo para se reeleger.

Mas como fazer isso em casos nos quais desfazer a arapuca bolsonarista significa exibir números mais modestos que os do antecessor justamente na área social, carro-chefe das gestões e das campanhas petistas desde que o partido chegou ao poder, em 2003?

Esse dilema já tinha aparecido na decisão de voltar atrás no subsídio aos combustíveis que o ex-presidente concedeu no pacote de desespero de 2022.

Agora, a bem-vinda depuração do Cadastro Único — que veio junto com outra medida acertada, a busca ativa para incluir no programa pessoas e famílias que de fato precisam ter renda, mas estavam alheias ao sistema — vira uma arma para fritar o ministro Wellington Dias e entregar a pasta ao PP, partido que comandava a Casa Civil de Bolsonaro e que é presidido por Ciro Nogueira, justamente quem está fazendo o maior estardalhaço sobre Lula ter minguado o benefício, nas redes sociais. No mínimo irônico, para não dizer nonsense.

Incluir o PP e o Republicanos no governo pode ser uma boa jogada à luz do pragmatismo necessário para que a governabilidade não tenha de ser negociada a cada votação, sempre mais caro. Mas faz algum sentido político, histórico e programático levar esses partidos, que estiveram com Bolsonaro até ontem (até hoje), para o núcleo duro da administração lulista, no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social ou na Saúde?

Não só não faz, como seria uma capitulação grave, a ser cobrada pelos eleitores que escolheram Lula justamente para desbolsonarizar o Brasil. O capitão não anabolizou o finado Auxílio Brasil por convicção. Sua vida parlamentar foi dedicada a um discurso anti-Bolsa Família, que sempre comparou a esmola ou a compra de votos.

Uma vez no poder, no auge da pandemia, decidiu cortar o Auxílio Emergencial de uma vez, enquanto ainda negava vacina no braço do povo brasileiro, o que resultou num desastre humanitário do qual governo e Congresso tiveram de sair correndo atrás com meses de atraso.

Por fim, diante da desvantagem para Lula nas pesquisas, lançou mão da PEC Kamikaze para elevar o benefício para R$ 600 até o fim de 2022, na esperança de que isso fosse garantir sua permanência no Alvorada.

Pode-se falar de Lula e do PT o que for, menos que seu compromisso com o Bolsa Família seja dessa natureza utilitária. Premiar um partido que chancelou esse vaivém de dinheiro para pobres a depender da conveniência política seria um grave erro sem garantia de sucesso.

A serem verdade os dados oficiais do ministério, tanto a redução momentânea de famílias beneficiadas quanto a do valor médio do tíquete são frutos do estabelecimento de políticas virtuosas de aprimoramento do programa, para que ele chegue a quem precisa e ofereça mecanismos de calibragem de quem está nele, mas pode passar pela porta de saída porque deixou de preencher alguns de seus requisitos.

Uma das razões que tornavam o Auxílio Brasil uma política pública mais mal desenhada que o Bolsa Família era justamente a opacidade dos critérios de adesão, que permitiam, entre outras burlas, que famílias se pulverizassem em busca de ampliar o acesso ao dinheiro.

Fritar Wellington Dias por gerir recursos públicos com responsabilidade só porque o instantâneo permite a narrativa de que Lula paga menos e a menos famílias que Bolsonaro é correr o risco de ter a boca entortada pelo vício no cachimbo do populismo que usa pobres como cobaias de experimentos com altas doses de dinheiro público às vésperas de eleições.

 

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