sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Flávia Oliveira - Sem defesa legítima

O Globo

Até 1830, maridos tinham o direito legal de matar esposas flagradas em adultério

Durou o tempo de um Brasil inteiro até o Supremo Tribunal Federal sepultar a barbaridade jurídica da legítima defesa da honra, que, décadas a fio, sacramentou a impunidade para feminicidas e agressores de mulheres. Somente no primeiro dia de agosto deste ano, por unanimidade, dez ministros — o 11º, Cristiano Zanin, só tomaria posse ontem — entenderam que a argumentação retórica contraria os princípios constitucionais da dignidade humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Assim, a estratégia não poderá mais ser utilizada por defesa, acusação, autoridade policial e juízo, tampouco em julgamentos do Tribunal do Júri.

A legítima defesa da honra, como tantas violações contra indivíduos e grupos sociais no Brasil, é herança do período colonial, quando a honra masculina era tida como bem jurídico. Até 1830, ano da promulgação do Código Criminal do Império, maridos tinham o direito legal de matar esposas flagradas em adultério. As Ordenações Filipinas — compilação jurídica vigente em Portugal e também no Brasil até ali — caducaram, mas a estrutura de poder que subjuga mulheres não.

— O crime de feminicídio é de extrema e irreversível violência, pois atenta radicalmente contra todos os direitos e garantias estabelecidos nas leis internacionais e nacionais. Trata-se de um ato de ódio, que distorce todo o sentido de humanidade. Consolida no tempo a visão hegemônica masculina sobre as mulheres como propriedade, objeto de transgressão e símbolo de fraqueza. A legítima defesa é uma tese absurda e machista que valida a brutalidade — diz Fabiana Dal’Mas Paes, promotora do MP-SP e presidente da Associação Brasileira das Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ-SP), que atuou no STF pela inconstitucionalidade reivindicada na ação movida pelo PDT.

Embora secular, a legítima defesa da honra tomou a opinião pública brasileira em 1979, no julgamento de Doca Street, pelo assassinato, três anos antes, de Ângela Diniz, sua então companheira, no balneário de Armação dos Búzios (RJ). O criminalista Evandro Lins e Silva, advogado de defesa, apresentou o cliente como “um homem humilhado às últimas consequências”, vítima de uma mulher que “queria a vida livre, libertina, depravada”.

O júri era formado por duas mulheres e cinco homens, todos moradores de Cabo Frio (RJ), cidade da Região dos Lagos onde se deu o julgamento. A estratégia de culpar a vítima prevaleceu, e o feminicida foi condenado a somente dois anos de detenção, com direito a suspensão da pena. Doca Street só seria preso em 1981, condenado a 15 anos no segundo julgamento, fruto da pressão do movimento feminista, que ganhava força à época.

A Carta Magna que estabeleceu a igualdade entre homens e mulheres é de 1988; a Lei Maria da Penha, contra violência doméstica, foi promulgada em 2006; a Lei do Feminicídio, em 2015. A legítima defesa da honra resistiu às três. Sem previsão legal, flagrantemente inconstitucional, não só livrou da condenação, mas emprestou aura heroica a assassinos de mulheres.

A decisão do STF varre a legítima defesa da honra, mas não põe fim à violência de gênero. A última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública contabilizou aumento em todos os crimes contra mulheres: feminicídio e tentativa, agressão por violência doméstica, ameaça, violência psicológica. O ano passado bateu recorde de registro de estupros, 74.930 casos. No STF, colegiado com 11 cadeiras, somente duas mulheres têm assento, proporção menor que no júri de Cabo Frio. A ministra Rosa Weber, em seu voto, afirmou que, numa sociedade democrática, “não há espaço para a restauração dos costumes medievais e desumanos do passado, pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso, em defesa da ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade”.

Atual presidente do STF, ela deixará a Corte em outubro, por aposentadoria. Para seu lugar, o presidente da República ainda hesita em indicar outra mulher. Organizações da sociedade civil e parte do mundo jurídico se mobilizam por juristas negras, caso de Adriana Cruz e Karen Luíse (juízas), Lívia Sant’Anna Vaz (promotora), Lívia Casseres (defensora pública), Soraia Mendes e Vera Lucia Araújo (advogadas); e brancas, entre elas, Regina Helena Costa (ministra do STJ), Simone Schreiber (desembargadora), Dora Cavalcanti, Carol Proner e Flávia Rahal (advogadas).

A ministra Cármen Lúcia, que corre o risco de ser a única mulher no STF, a depender da escolha de Lula, disse que a legítima defesa da honra é questão, mais que jurídica, humanitária:

— A sociedade ainda hoje é machista, sexista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser donas de suas vidas.

Enquanto o STF concluía o julgamento da ADPF 779, parte do país se assombrava com o caso da jovem mineira que fora abandonada desacordada na calçada por um motorista de aplicativo — sem treinamento nem noção sobre dignidade humana ou serviço público — e acabou levada por um criminoso e estuprada num terreno abandonado. No Brasil, mulheres, como bem definiu a irmã da vítima, ainda são descartadas como sacos de lixo.

 

Um comentário:

Pablo De Las Torres disse...

Essas análises identitárias são divertidas. Esquecem que foi uma mulher que defendia que as mulheres princesas vestem rosa (Barbie mostra isso). A articulista deve ter uma excelente impressão dos governos Rosinha e Benedita.