Eu & / Valor Econômico
O grande interesse pelo filme de
Christopher Nolan sobre o físico americano mostra que persistem inquietações
quanto ao poder político paralelo de ignorantes e toscos
Na apreciação da biografia de J. Robert
Oppenheimer, que liderou a criação da bomba atômica, mais importante do que as
explosões no Japão e suas consequências trágicas é o episódio das vítimas da
retaguarda, ele próprio incluído. O das vítimas do poder político pelas bombas
criado, o poder da morte e de um novo medo social.
O grande interesse pelo filme de
Christopher Nolan mostra que persistem inquietações não só quanto à destruição
de Hiroshima e Nagasaki: em 6 segundos, mais de 100 mil seres humanos foram
transformados em pó. Mas também a um novo poder político paralelo, o dos
poderios de ignorantes e toscos que sobrepõem suas aspirações de mando ao
conhecimento e seus limites éticos.
A concepção perversa de que é político
matar o outro, eliminar o diferente, inventou uma nova economia da morte
intencional, tornou mais rápida e barata a guerra de extermínio. Colocou no
centro da história a possibilidade da bomba no lugar da guerra. Transformou a
incerteza na única certeza do mundo. Qualquer irresponsável que saiba manipular
essa incerteza, por diferentes meios, como a religião, o populismo, o
militarismo, pode usurpar o poder legítimo.
Nos países que têm vivido surtos e tendências autoritários, como o do trumpismo, do bolsonarismo, do orteguismo, de vários modos essa incerteza define um inesperado tipo de dominação política, o da ignorância apoiada na falta de ética.
A erudita conferência de Oppenheimer no
Seminário de Teologia da Universidade de Princeton, em 1958, uma universidade
protestante, já depois da repressão macarthista que sofrera em 1954, indica que
ele tinha ampla consciência das circunstâncias do desencontro entre o poder da
bomba e o poder para administrar seu emprego.
Confessa dificuldade para lidar com o tema
dos valores. Reconhece o enorme papel da tradição. Mas a tradição foi
esvaziada. Em parte porque conhecemos mais, em parte porque não conhecemos
mais, em parte porque conhecemos de modo diferente.
O problema não estava, pois, nos que se
adiantaram para produzi-la, mas nos que se atrasaram para ter princípios para
usá-la. Como os teólogos que foram ouvi-lo, no fundo para que lhes contasse o
que sobrara de Deus.
Na explosão da bomba experimental, Trindade,
em 1945, em Los Alamos, a Oppenheimer ocorreu uma frase de Krishna: “Agora me
tornei a morte, o destruidor de mundos”. E dois anos depois diria: “... os
físicos conheceram o pecado...”.
Essa é uma ideia antiga. A ideia da
descoberta da função reveladora do fruto proibido está também no Velho
Testamento, quando Eva o come e tanto ela quanto Adão perdem a inocência. Em
Los Alamos e no Éden houve a ruptura dos limites humanos do conhecimento.
A história da ciência é demarcada pelas
rupturas, na circunstância do conhecimento, que criam novas eras. Em Cambridge,
na Inglaterra, há um pub antigo, do século XVIII, o Eagle. Num canto, há uma
mesa de seis lugares onde Francis Crick e James Watson costumavam almoçar com a
equipe da pesquisa sobre o DNA no Laboratório Cavendish, ali perto.
Em 28 de fevereiro de 1953, o grupo havia
trabalhado a manhã inteira. Quando saiu para almoçar, Crick ficou para trás
para fazer uma última verificação nos dados. Dali a pouco, pálido, ele entrou
no pub e disse: “Watson, nós acabamos de descobrir o segredo da vida”. Era o
meio-dia de um sábado chuvoso.
A partir daquele instante, um dos maiores
enigmas da vida, decifrado por uma equipe de cientistas de uma das mais antigas
universidades do mundo, a Universidade de Cambridge, deixava de ser monopólio
de Deus. Nem por isso os pesquisadores tiveram que se defrontar com a repressão
que se abateria sobre Oppenheimer em 1954. Fora ele investigado, interrogado e
humilhado pela comissão do senador McCarthy, que desencadeou uma onda de perseguições
políticas contra cientistas, escritores, atores e artistas por motivos
ideológicos.
Uma verdadeira epidemia de delações
estimuladas arrastou muitos para a suspeita generalizada de comunismo. A onda
chegou até aqui com a ditadura de 1964 e as vítimas que fez em nossas
universidades.
Grandes nomes de diferentes universidades
brasileiras foram espionados, arrolados, interrogados, presos alguns e
demitidos outros sob acusação falsa de subversão e de comunismo. Na USP, em sua
Faculdade de Filosofia, três foram interrogados por um tenente coronel.
Dentre os seus grandes nomes: Mário
Schenberg (físico e crítico de arte), João Cruz Costa (filósofo), Florestan
Fernandes (sociólogo). A Cruz Costa, nosso maior conhecedor do positivismo, foi
perguntado se ele sabia o significado de Ordem e Progresso. Sabia e deu uma
aula. Foi cassado e desligado da USP, em 1969, junto com extenso número de
docentes.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
2 comentários:
A Mário Schenberg proibiram-lhe dar aulas na USP. Não levaram em conta que ele havia sido indicado por um eminente desconhecido chamado Albert Einstein, como um dos três físicos capazes de prosseguir sua linha de pesquisa revolucionária e que lhe dera dois Prêmios Nobel.
Muito bom,o artigo e o comentário.
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