quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Míriam Leitão - Sangue no asfalto e a rotina do absurdo

O Globo

As chacinas no Rio, em São Paulo e na Bahia são mais uma mostra dramática de como o país tem errado na segurança pública

O sangue escorre do camburão. É Rio de Janeiro, na semana passada. Poderia ser na Bahia ou em São Paulo. Nas três chacinas em cada um desses estados, na última semana, a polícia matou 51 pessoas. Há 30 anos, o Rio assistia a duas chacinas quase simultâneas, a da Candelária e a de Vigário Geral. Em 92, houve Carandiru, em 95, Corumbiara, em 96, Eldorado dos Carajás. Não são casos isolados, nos últimos doze meses, segundo dados do Fogo Cruzado, houve 37 chacinas policiais no Rio e 29 na Bahia com, ao todo, 262 mortos.

A foto de Eduardo Anizelli, publicada na Folha de S.Paulo, em 4 de agosto, deveria parar o Brasil. O blindado da PM pingando sangue revela o quanto o país tem errado na segurança pública. O hoje desembargador José Muiños Piñeiro atuou como promotor nas chacinas da Candelária e de Vigário Geral e explica uma diferença.

—Corumbiara, Eldorado dos Carajás e Carandiru foram operações oficiais, a imprensa estava presente, havia a identificação dos policiais envolvidos. No caso das duas chacinas no Rio há 30 anos, os chacinadores eram policiais militares e alguns policiais civis, marginais e agentes da lei, que agiram clandestinamente. A foto no GLOBO dos 21 caixões era dantesca, humilhante — lembra Muiños.

O economista Daniel Cerqueira, do IPEA, e coordenador do Atlas da Violência, está convencido de que chacinas em operações oficiais ou em atos clandestinos viraram uma rotina no Brasil.

—É um padrão que se repete historicamente. No Brasil, a gente não sai desta página. É um lapso civilizatório. Agora, em uma semana, morreram 25 na Bahia, 16 em Guarujá e 10 no Rio. O que há de comum nestes casos? São atos de vingança e há indícios de que cenas foram desfeitas pelos próprios policiais.

Entrevistei Cerqueira e Muiños na Globonews ontem e, para me preparar, pedi dados à jornalista Cecília Oliveira, da ONG Fogo Cruzado. Os números mostram a rotinização do absurdo. Nos últimos doze meses, houve no Rio três chacinas por mês com uma média de 16 baleados. Na Bahia, duas chacinas por mês com nove baleados. Isso revolta até quem vive de estudar o assunto, como meus dois entrevistados.

—Eu, como cidadão, como ex-promotor, como magistrado não autorizo, não quero delegar a um policial civil ou militar a decisão de quem ele vai matar ou não. É necessário que se criem mecanismos para coibir isso. No caso da Candelária, em que morreram crianças, chacinadores foram condenados a 300 anos, que na verdade eram 20, e com a progressão de pena, não ficaram mais que cinco ou seis anos presos — diz o desembargador.

— O que aconteceu na última semana, e que se repete há décadas, é um verdadeiro escândalo, a gente não pode aceitar, que haja uma situação como essa. O Brasil é o país com a oitava maior letalidade policial do mundo e perde para governos autoritários como Venezuela, El Salvador, Síria e Nicarágua. O poder disruptivo na cabeça do policial de que ele deve matar, matar, matar, causa exaustão, problemas emocionais sérios e até suicídio. A gente está matando também os próprios policiais, a democracia, a possibilidade de ter um sistema de segurança — diz Cerqueira.

Recentemente, houve uma queda do número de homicídios no Brasil, e que o governo passado quis atribuir à política armamentista. Daniel Cerqueira fez um estudo e mostrou que, na verdade, a disseminação das armas causou o efeito contrário. Sete mil homicídios a menos teriam ocorrido até 2021 se não tivesse aumentado a circulação das armas.Nas raízes de toda a violência no Brasil está, segundo meus dois entrevistados, a velha chaga do racismo. Na semana passada, como em todas as semanas violentas, os negros são os que mais morrem.

—Quem são os marcados para morrer? Os negros. Temos vários trabalhos mostrando o caráter racista impregnado no país. É um elemento que dinamiza toda essa barbárie — diz Daniel Cerqueira.E estamos matando, ou encarcerando, também o futuro do país, alerta Muiños.—Um terço da nossa população carcerária tem entre 18 e 24 anos e 90% deles ligados à questão das drogas, muitos apanhados com pequenas quantidades. Ou seja, quem está preso é o jovem que está iniciando a sua maturidade e é cortado da sociedade — diz o desembargador.

No fim de toda essa história tétrica, em que um camburão derrama sangue no asfalto, em que caixões são enfileirados, a vítima, como escreveu meu colega Fernando Gabeira, é a democracia.

 

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