sábado, 26 de agosto de 2023

Pablo Ortellado - A classe trabalhadora agora é de direita?

O Globo

Música explode com o relato da vida dura a certas ideias conservadoras

Uma canção folk escrita por um pequeno fazendeiro e ex-operário do estado americano da Virgínia atingiu a primeira posição no ranking da Billboard, principal revista da indústria musical. “Rich Men North of Richmond” foi escrita e interpretada por Oliver Anthony (nome artístico) e registrada numa gravação amadora. O sucesso da música, que combina o relato da vida dura da classe trabalhadora a certas ideias conservadoras, reacendeu o debate a respeito de a esquerda americana estar perdendo para a direita a influência política sobre os trabalhadores, especialmente para o segmento branco das cidades do interior.

 “Rich Men North of Richmond” fala da realidade de trabalhadores que vendem a alma, desperdiçando a vida, “trabalhando o dia todo” por “um salário de merda” enquanto os ricos que vivem ao norte de Richmond (cidade ao sul da capital americana, Washington) querem o “controle total”. Poderia seguir o roteiro tradicional da canção de protesto de esquerda, denunciando as condições dos trabalhadores e culpando os patrões pela ganância, mas, logo na segunda estrofe, dobra à direita.

O salário de merda não vale nada porque “é taxado sem fim”. Os políticos, em vez de cuidarem dos mineiros, estão cuidando dos menores (de idade) “numa ilha num lugar qualquer” — alusão à ilha do bilionário Jeffrey Epstein e às teorias da conspiração de que elites políticas estão envolvidas com redes de pedofilia. A canção segue contando que, enquanto há gente na rua sem ter o que comer, “obesos mamam” nos programas sociais para comprar biscoitos de chocolate —alusão aqui à welfare queen, o mito dos anos Reagan da mulher obesa indolente que frauda programas sociais para viver sem trabalhar. O refrão fala sobre viver num “mundo novo”, mas com “alma antiga”, como se não fosse possível se adaptar aos novos tempos, e lamenta “o que o mundo se tornou para gente como eu e para gente como você”.

Virou hit e ultrapassou canções de Taylor Swift, Olivia Rodrigo e Dua Lipa. É a primeira vez na História que um artista chega ao primeiro lugar sem jamais ter ocupado qualquer outra posição na parada da Billboard. O sucesso súbito de um cantor amador com inclinações conservadoras despertou a desconfiança de ativistas e críticos de esquerda, que o atribuíram a uma orquestração da direita. É fato que grandes influenciadores de direita promoveram a música, e parece ter havido uma campanha incentivando a compra de downloads — forma obsoleta de acessar música, mas que tem um peso grande na nota que compõe o ranking da Billboard.

Os críticos de esquerda esquecem, porém, que todos os outros produtos comerciais no ranking também foram promovidos por influenciadores (por razões econômicas, e não políticas) e que o incentivo para comprar downloads para subir a nota é uma prática nas comunidades de fãs — como os de K-pop. A explosão da música pode ter sido inicialmente impulsionada pela militância de direita, mas seu sucesso é genuíno. A canção tem uma melodia cativante, é de uma simplicidade singela e foi cantada com honestidade e paixão. É autêntica.

Oliver Anthony deu declarações esclarecendo que, politicamente, se coloca “bem ao centro” e que desgosta igualmente dos políticos dos partidos Democrata e Republicano. Seu conservadorismo não é sentido como uma opção, é “natural”.

A força de “Rich Men North of Richmond” está em sua simplicidade e autenticidade, em ser uma canção que parece mesmo escrita por um pequeno fazendeiro do interior desiludido e indignado. Sua política é um pouco confusa como a cultura política das classes populares. E sua coloração política é mais bem explicada pelo alcance do conservadorismo na classe trabalhadora americana que por alguma armação.

Críticos de esquerda têm denunciado apaixonadamente a estupidez política de, simultaneamente, reclamar dos “salários de merda” e dos programas sociais que aliviam a pobreza, mas têm se esforçado pouco para entender por que, em certos meios, a forma conservadora tem se tornado a linguagem espontânea para expressar a indignação social.

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