Folha de S. Paulo
Pouco avançamos em reforma e modernização
da segurança
O assassinato de Mãe Bernadete, com 12
tiros no rosto, não pode ser considerado um caso isolado. O colapso da
segurança pública em estados como Amapá, Bahia, Amazonas ou Rio de Janeiro é
uma expressão clara da incapacidade do Estado brasileiro de assegurar a igual
aplicação da lei e da ordem em todo o território nacional.
Nas últimas duas décadas, cerca de 1 milhão de pessoas foram intencionalmente mortas no Brasil, o que nos coloca entre os países mais violentos do mundo. Grande parte das vítimas são jovens negros, moradores de nossas periferias sociais. Apenas para termos uma dimensão da carnificina, 306 mil pessoas perderam a vida em dez anos de guerra na Síria, de acordo as Nações Unidas.
Apesar da catástrofe humanitária que
brutaliza a vida de milhões de brasileiros todos os dias —causando dor e
injustiça, mas também bloqueando o desenvolvimento da nossa sociedade—, poucos
foram os avanços que tivemos nessas décadas no campo da reforma e modernização
de nossas políticas de segurança e das instituições responsáveis pelo sistema
de justiça criminal.
Onde isso foi feito, os resultados
apareceram, tanto em termos de redução significativa das taxas de homicídio,
como em São Paulo —que hoje é o estado mais seguro da federação—, como de
redução de violência policial
—resultados agora colocados em risco por uma recente lógica de milicianização.
A responsabilidade por esse fiasco deve ser
atribuída, ainda que de maneira não simétrica, tanto a políticos de direita
como de esquerda que passaram pelos governos federal e estaduais. Enquanto boa
parte da esquerda capitulou frente ao tema da segurança pública e empurrou o
problema com a barriga, a direita explorou de maneira oportunista o medo da
população para ordenhar votos. No mais das vezes, populistas de direita
promoveram a violência policial, o acesso às armas, a livre ação das milícias e
o encarceramento em massa, como resposta à criminalidade. Essas
"soluções" não apenas agravaram o problema como geraram efeitos
altamente perversos.
Apenas no último ano, 6.429 pessoas foram
mortas em decorrência de intervenção policial, de acordo com o último relatório
do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; 161 policiais também foram mortos,
majoritariamente realizando bicos. Os negros constituíram 83% dessas mortes
provocadas pelo Estado. Da mesma maneira, o encarceramento em massa atinge
desproporcionalmente a população negra (68%). A discriminação e o arbítrio
policial também diminuem a confiança da população vulnerável nas polícias,
reduzindo a sua eficácia.
O encarceramento massivo de jovens,
decorrente da irracional "guerra às drogas", por sua vez, tem
transformado o Estado brasileiro no maior parceiro do crime organizado, que
cresce e se fortalece dentro de nossas unidades prisionais.
O cidadão brasileiro merece uma boa
política de segurança pública. Soluções mágicas e perversas não mais podem ser
admitidas. Elas só beneficiam os gigolôs da segurança e o crime organizado.
Precisamos reformar e modernizar as polícias, qualificar seus profissionais,
punir os maus profissionais, enfrentar os gargalos da justiça criminal –ela
também ineficiente e discriminadora—, além de promover urgente e profunda
reforma do sistema de punição e encarceramento.
O Brasil tem flertado há muito com a
anomia. Se os democratas não assumirem a responsabilidade por essa dimensão
fundamental da vida dos cidadãos, estaremos constantemente ameaçados por
soluções rápidas, contundentes e, sobretudo, perversas.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
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