sábado, 26 de agosto de 2023

Rosa Weber - Memória coletiva, justiça e democracia

O Globo

Rui Barbosa foi essencial para o entendimento da Suprema Corte conforme a conhecemos hoje: guardiã da Constituição

Em tempos de instituições consolidadas e fortalecidas, faz-se necessário olhar para o processo histórico que nos trouxe até aqui. E olhar para o passado é olhar para nossa história, nossa cultura, nossa memória institucional. No ano em que se registra um século da morte de Rui Barbosa, a partir do legado deixado por este brasileiro invulgar, de múltiplos talentos, notável jurista, jornalista e político, temos a oportunidade de refletir sobre a construção de nosso país no preparar do futuro que se desenha no hoje.

Digo isso na data em que, pela primeira vez em cem anos, a presidência do Supremo Tribunal Federal retorna à Biblioteca Nacional. A última vez que isso ocorreu foi precisamente na despedida de Rui Barbosa, figura essencial para o entendimento da Suprema Corte conforme a conhecemos hoje: guardiã da Constituição, firme no entendimento de que o governo das leis sempre prevalece sobre o governo dos homens.

Um dos principais artífices da Constituição de 1891 e de seus princípios republicanos e federalistas, com separação entre os Poderes e regime democrático, Rui Barbosa foi um dos maiores colecionadores de livros de seu tempo. Sua biblioteca reunia 37 mil volumes, dentre os quais obras jurídicas dos mais diversos países, inspiração para todos os que compreendem que não há progresso sem conhecimento.

Na ocasião dos ataques antidemocráticos de 8 de janeiro, o busto de Rui Barbosa estava entre os objetos vandalizados em nossa Suprema Corte, e a cicatriz derivada desse episódio ali permanecerá. Representa a resiliência em favor da liberdade e da democracia constitucional. Reforça a primazia do conhecimento, da diplomacia e do diálogo contra atos de violência e de opressão.

Recentemente, visitei em Salvador da Bahia a cripta onde estão os restos mortais de Rui Barbosa e ontem participei de nova homenagem durante visita à Biblioteca Nacional, ocasião em que ficou disponível em meio digital, no ano em que celebramos os 35 anos da Constituição Cidadã de 1988, um documento oficial de valor inestimável, a “prova corrigida caligraficamente da Constituição dos Estados Unidos do Brasil” de 1891. Na mesma ocasião, fiz a entrega da primeira edição de nossa Constituição traduzida para uma língua indígena, o nheengatu.

Depositar a Carta Máxima em língua falada por nossos povos originários na Biblioteca Nacional é mais que ato ético e estético. É marco simbólico. Trata-se da valorização do indígena como parte formativa indissociável de nossa cultura e de nossa visão de país. Da compreensão de indígenas enquanto sujeitos de direitos e deveres em pleno exercício de sua cidadania, viabilizando a construção de novas memórias para um futuro que pertence a todas e a todos.

Nossa Biblioteca Nacional, importante lembrar, é um dos mais antigos tesouros nacionais, com o maior acervo da América Latina. A partir da soma dos tempos, reuniu a memória social que cada geração buscou guardar, tornando-se um dos mais belos ecossistemas do país, patrimônio imaterial de nossa identidade que se renova com seus leitores-cidadãos.

Aberta ao público em 1814, testemunhou um Brasil que paulatinamente clamava por mais liberdade e cidadania para tornar-se um país-nação, ocupando-se em construir sua memória enquanto passaporte para o futuro. Sabemos, não há distância entre leitura e democracia. O anseio por mais participação social, igualdade e justiça, o apreço pelo público, o compartilhamento de valores para e pelo bem comum estão intimamente relacionados ao reconhecimento de nosso passado e à construção coletiva do saber.

Com o retorno à Biblioteca Nacional após um século, enquanto presidente da Suprema Corte, reforço os laços entre essas duas instituições tão determinantes para a República. A Casa revisora das questões constitucionais e a Casa que conserva a memória da nação brasileira, neste 25 de agosto de 2023, novamente se encontraram, num gesto de aproximação que promove a cultura da paz entre todos aqueles que se empenham no fortalecimento da democracia constitucional e da justiça em nosso país.

*Rosa Weber é presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça

Nenhum comentário: