domingo, 10 de setembro de 2023

Jairo Nicolau* - Representação desproporcional

O Globo

Muitos eleitores não se dão conta de que seus votos não têm o mesmo peso nas eleições para a Câmara dos Deputados

A ideia de que numa democracia o voto de todos os cidadãos deve ter o mesmo valor é fácil de ser observada nas eleições presidenciais brasileiras. Basta acompanhar a apuração para entender que votos vindos de todos os lugares do país têm o mesmo peso na definição da votação final de cada candidato a cargo majoritário.

Muitos eleitores não se dão conta, porém, de que os seus votos não têm o mesmo peso nas eleições para a Câmara dos Deputados. Para isso acontecer, a bancada de cada estado teria de ser proporcional à população; um estado onde moram 10% dos habitantes do país teria uma bancada de 10%. Essa é a regra adotada na distribuição das cadeiras da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos desde o fim do século XVIII.

No Brasil isso nunca aconteceu. As bancadas das províncias (no Império) e dos estados (na República) nunca foram proporcionais à população. As unidades que ganharam e perderam variaram no tempo, e existem muitas razões para os legisladores optarem por não seguir o modelo proporcional adotado nos Estados Unidos.

Atualmente, o voto dos eleitores brasileiros não tem o mesmo peso nas eleições para a Câmara dos Deputados por duas razões. A primeira é o estabelecimento de um piso e um teto na representação das unidades da Federação na Câmara — nenhuma pode ter menos de oito ou mais de 70 deputados.

O Brasil tem 203 milhões de habitantes (Censo de 2022). Para sabermos o número de habitantes que cada deputado federal representa, dividimos 203 milhões por 513 (o total de deputados federais). O resultado da divisão é 396 mil.

Numa situação hipotética em que a bancada dos estados na Câmara dos Deputados é proporcional à população, basta dividir o total de habitantes por 396 mil (existem muitas formas de alocar os restos dessa divisão). Por essa conta, São Paulo, o estado mais populoso (44, 4 milhões de habitantes) ficaria com cerca de 112 deputados. No outro extremo, Roraima, com apenas 636 mil, ficaria com apenas um deputado.

Desse modo, a regra do teto de 70 deputados tira de São Paulo 42 representantes. E a regra do piso de oito deputados favorece explicitamente seis unidades da Federação: Roraima, Amapá, Acre, Tocantins, Rondônia e Sergipe. Mato Grosso do Sul e Distrito Federal ficam no limiar de receber sete ou oito representantes. Vale lembrar que muitos estados acabam se beneficiando da transferência das 42 cadeiras perdidas por São Paulo.

O artigo 45 da Constituição estabelece que “o número total de deputados, bem como a representação por Estado e pelo Distrito Federal, será estabelecido por lei complementar, proporcionalmente à população, procedendo-se aos ajustes necessários, no ano anterior às eleições”.

Essa revisão não é realizada desde 1993, quando os dados do Censo de 1991 serviram como base para distribuição das bancadas. Nesses 30 anos, alguns estados perderam população, e outros ganharam. A ausência de revisão acabou gerando uma série de distorções —um exemplo: o Pará, estado com população de 8,1 milhões, tem um deputado a menos que o Maranhão, com uma população de 6,8 milhões.

A ausência de correção das bancadas estaduais é a segunda razão para que o peso do voto dos moradores dos diferentes estados não seja o mesmo nas eleições para deputado federal.

A recente decisão do Supremo tratou dessa segunda razão. A Corte definiu que o Congresso tem de aprovar uma lei que reconfigure as bancadas dos estados até o dia 25 de junho de 2025, para valer nas eleições do ano seguinte.

As assimetrias entre a proporção de moradores e representantes nunca foram um tema discutido seriamente no Brasil. Essa é uma “não questão”, que foi pouco debatida na Assembleia Constituinte de 1987/88 e passou ao largo da discussão de todas as comissões de reforma política organizadas no Congresso desde os anos 1990.

A decisão do STF serviu para mostrar o óbvio: estados devem ter uma bancada proporcional à sua população. Só que a regra 8/70 faz com que a proporcionalidade não se aplique a todos os estados.

*Jairo Nicolau, cientista político, é professor e pesquisador da FGV/CPDOC

 

2 comentários:

Alfredo Maciel da Silveira disse...

Olá Gilvan.
O Jairo Nicolau é uma das minhas referências neste assunto, em que tambem já andei escrevendo. Mas a ligação certa e óbvia do Art 45 com o " Pacote de Abril" do Geisel-Golbery, o Nicolau já deveria ter citado.
Durante a Constituinte nenhum dos " presidenciaveis" quis mexer nesse "vespeiro" ( inclusive Aureliano e Brizola bem como Itamar, que veio a ser vice de Collor.) Imagina Lula, Afif , Covas, Ulisses, e outros " paulistas" que agora não me lembro...

ADEMAR AMANCIO disse...

Alfredo Maciel da Silveira.