Folha de S. Paulo
O protofascismo é uma cesura social que
penetra como estado de espírito no modo civilizatório
Uma cena neobrasileira. À beira da piscina
do condomínio, o pacato vizinho, membro da classe médica, comenta à boca
pequena: "Vejam o que fizeram com o homem...é a máfia!" Todos se
conhecem, mas o silêncio que se segue é constrangedor. Antes, aparentemente,
concordariam, não mais. O "homem" é o ex-mandatário, a
"máfia" abrange entidades republicanas como o Supremo Tribunal
Federal, o Ministério da Justiça e a Polícia Federal. No noticiário desfilam
acusações gravíssimas, que a alma condominial, cognitivamente dissonante,
suprime para metaforizar a República como Don Corleone.
Esse episódio corriqueiro, mas recorrente, é pretexto para observar a vida no seu acontecer específico e tentar trazer à luz aspectos originais do fenômeno da desorientação política, sem o automatismo das categorias normalmente usadas nas ciências históricas. A singularidade da vida pessoal comporta situações e manifestações irredutíveis às objetivações das estruturas sociais. Ignorância, ódio e interesses de classe são influentes fatores coletivos, porém é preciso voltar-se diretamente para a subjetividade enquanto vida histórica na recusa protofascista de enxergar a realidade.
Protofascismo não é exatamente nazifascismo
instalado, e sim uma cesura social que penetra como estado de espírito no modo
civilizatório. Na prática, uma síndrome análoga às afecções fronteiriças da
personalidade que os psicanalistas conheceram como neurose de caráter e hoje se
generaliza como "borderline". Um mal-estar ancorado em detalhes e
pequenas causas. Sabe-se que, antes da Grande Guerra, os oficiais do exército
inglês desprezavam Hitler, não porque fosse nazifascista, mas porque tinha sido
cabo na vida militar e pintor de paredes na civil.
Raciocínio semelhante vale para o
antilulismo figadal, aversão a um torneiro mecânico sem diploma superior. A
confusão entre sindicalismo e revolucionarismo foi sempre má-fé interpretativa
das elites. Igualmente, o argumento das pedaladas fiscais para o impeachment de
Dilma, agora desmontado como razão de marmelo, foi fraseologia técnica para
encobrir a urdidura parlamentar e a indignação senhorial pela PEC das
Domésticas. Já o antipetismo entranhado na classe médica tem origem
corporativista na vinda de profissionais cubanos.
Hoje como no passado, esquerdismo e
comunismo são bichos-papões ideológicos de uma cidadania infantilizada. A
subjetividade de largas frações de classes sociais orienta-se por preconceitos,
firulas mesquinhas, não por fatores racionais. São sinais exalados de ruínas
morais e ignorantismo chapado. Fanatismo não é, assim, insulto banal, mas justa
caracterização da consciência protofascista. Não enxergar o real à frente,
reduzindo o mundo a um clichê, é a sua lei suprema.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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