O Globo
Nenhum país de projeção econômica deixa de
ser também potência esportiva, pois medalhas têm relação direta com
desenvolvimento humano
Atleta consagrada e cidadã engajada, Ana Moser não
tinha padrinho político nem peso partidário. Dentro e fora das quadras, sua
filiação sempre foi ao esporte com “E” maiúsculo — aquele que forma, educa,
constrói uma sociedade saudável e participativa. Despejada do ministério que
ocupou por apenas 245 dias, foi substituída por um apadrinhado do cacique
Arthur Lira, presidente da Câmara de Deputados, em nome de um sempre incerto
apoio do Centrão à governabilidade do presidente Lula.
Apesar de anunciada e esperada há semanas, a troca não é banal. Ela foi doída por retratar o menosprezo secular dado à função social do esporte no Brasil e por ocorrer justo quando a pasta embicava na busca de políticas públicas de alcance duradouro. Por si só, o nome de Ana Moser gerava orgulho e confiabilidade nacional — das alegrias nas quadras, então, nem se fala! E não deixa de ser ironia ter sido substituída por um deputado federal, André Luiz de Carvalho Ribeiro (PP/MA), que trocou de sobrenome pelo apelido do pai, prefeito de Alto Alegre do Pindaré, para fazer carreira política: Fufuca. Ou Fufuquinha.
Criado em 1995 no primeiro mandato de
Fernando Henrique Cardoso, com Pelé à frente, o Ministério do Esporte sempre
foi uma espécie de penduricalho errante na Esplanada brasiliense. Dependendo do
governante, passava a agregado do Ministério da Educação, da Cultura, do
Turismo ou da Cidadania. Durante os governos Lula 1 e 2 e Dilma 1 e 2, parecia
ser capitania hereditária do PCdoB. Sempre foi primo pobre. No primeiro governo
Lula, de janeiro de 2003, havia duas mulheres, 11 homens sem barba e 12
barbudos (contando os fiapos emergentes de Ciro Gomes, na Integração, e o bigode
histórico de Olívio Dutra). Um deles era Agnelo Rossi, empossado no Esporte
apesar do empenho pessoal de ídolos nacionais como o cestinha Oscar, do
basquete, o lendário Sócrates, do futebol, e o jornalista Juca Kfouri. Dos R$
97,2 bilhões do Orçamento da União para aquele ano, não mais do que R$ 100
milhões destinavam-se à desprestigiada pasta.
De lá para cá, houve altos e baixos, sempre
sem mudanças estruturais na função inclusiva do esporte. Também ocorreram cinco
Olimpíadas — inclusive a Rio-2016, de legado indigesto —, e estamos às vésperas
dos Jogos de Paris do próximo ano. Nenhum país de projeção econômica deixa de
ser também potência esportiva, pois medalhas têm relação direta com o
desenvolvimento humano da população. É erro corrente e grosseiro igualar dez
medalhas de ouro de um país, conquistadas numa mesma modalidade individual ou
provas múltiplas (natação, ginástica artística etc.) a dez ouros obtidos em
esportes coletivos ou modalidades variadas — estes refletem melhor a verdadeira
saúde esportiva e inclusiva de uma nação.
Vinte e cinco anos atrás, desembarcava no
Aeroporto de Guarulhos vindo de San Diego, onde mora até hoje, Joaquim Cruz,
nosso campeão olímpico e recordista mundial. Nos Jogos de Los Angeles, em 1984,
arrebatou o mundo com sua passada elegante na corrida de 800 metros e tornou-se
referência planetária. Porém nunca rompeu o cordão umbilical com o Brasil. E
ainda menos com o andar de baixo da cidade-satélite de Taguatinga, onde o pai
carpinteiro tentara a vida nos anos 1960. Sempre que vinha de visita à
terrinha, Joaquim trazia na bagagem material esportivo destinado à garotada que
corria descalça na periferia brasiliense. Sempre longe das câmeras, como é seu
feitio. Naquele desembarque de 1998, a “mala da doação”, que continha 33 pares
de tênis de segunda mão, de marcas e tamanhos variados, ficou. O atleta havia
condicionado seu cachê de US$ 1.250 do Sesi, por uma clínica e participação
numa minimaratona, a um adicional de US$ 500 para a compra de tênis reciclados
com pequenos defeitos (US$ 14,95 a peça). O valor da compra (com comprovante)
nem ultrapassava os US$ 500 então permitidos pela Receita Federal. Foi tratado
como sacoleiro vindo do Paraguai. Sentiu-se um subcidadão. Não se tratava de
kits árabes nababescos, como em tempos modernos.
Decidiu não fazer alarde. Proibiu o Sesc de
pagar os US$ 680 cobrados pela Alfândega e bateu pé. Deu certo. Concluiu duas
coisas:
— Os meninos precisam de tênis, e eu, de
emoção.
Da minimaratona de 1.200 atletas mirins,
participava o inevitável pelotão de descalços, com o chip eletrônico amarrado
nas canelas nuas.
É desse Brasil que o Ministério do Esporte
precisa cuidar. A pasta não deveria comportar uma Secretaria Nacional de
Apostas, as famosas bets agora presenteadas ao novo titular. Seu potencial de
receitas deverá ultrapassar os R$ 5 bilhões. Só assim conseguiu se tornar
atraente para Fufuca. Vida que segue.
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Vida que segue.
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