O Globo
Fernando Sabino, que faria 100 anos no dia 12
de outubro, está sendo comemorado com justiça com uma série de palestras e
filmes, além de uma edição especial de seu livro, “O Encontro Marcado”,
obra-prima que escolhi como sendo “O livro que mudou a minha vida”, numa
coletânea organizada por José Roberto Castro Neves, advogado, escritor e,
sobretudo, amante da literatura, publicada no ano passado. Reproduzo trechos do
texto, como uma homenagem ao grande escritor brasileiro.
“Talvez tenha sido devido à angústia que domina todo adolescente inseguro que se prepara para encarar a vida, sem saber que se trata de uma luta dura, permanente, quase sempre desesperada. Talvez por me ver refletido nas incertezas de Eduardo Marciano, na busca da literatura como plano de fuga.
(…) Passava os dias deitado no sofá da casa,
lendo. Sabino, Vinicius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, eram os
preferidos dos brasileiros naquela época. (…) Meu pai chegava em casa à noite,
depois de uma jornada tripla como médico, e reclamava: “Eu saio, você está aí
lendo. Volto, e você está na mesma posição, lendo. Tem que trabalhar”. (…) “O
que você quer ser na vida, afinal?”
“Jornalista”, respondi, instintivamente.
Afinal, a única coisa que gostava de fazer era ler e escrever. Tínhamos nosso
grupo de aspirantes a literatos, como em “O Encontro Marcado”. Acabei no Diário
de Notícias, um jornal que fora importante no Rio, mas estava decadente àquela
altura.
O jornal tinha uma cantina no subsolo, que se
alcançava através de uma escadinha de metal em caracol. O ambiente era
insalubre, e toda tarde via a um canto uma mesa sempre com três, quatro antigos
jornalistas, os ternos puídos, discutindo entre si temas profundos de política
ou internacional, tomando café com pão e manteiga, que “penduravam” na cantina.
Não recebiam salários, sempre atrasados.
Me via na redação do jornal de Belo Horizonte
em que Eduardo Marciano trabalhava, que tinha a mesma cantina em que os velhos
e novos jornalistas discutiam política, literatura, falavam de livros que não
escreveriam. Eduardo e seus amigos os consideravam “uns morcegões, que não
escreveram nada”.
Insisti no jornalismo, e acabei na redação do
O Globo. Fui levado, em meio a uma redação cinzenta de fumaça de cigarros,
barulhenta com as conversas e o matraquear das máquinas de escrever,
envelhecida pelos móveis antiquados onde sentavam-se aqueles antigos
jornalistas que vira no Diário de Notícias comendo média com pão e manteiga,
para ser apresentado ao chefe da redação. Era um negro de baixa estatura, mas de
voz alta e confiante. A primeira coisa que me disse foi: “Merval e Leonídio é
tudo nome de crioulo. Como nós somos brancos, eu sou Barros e você é Pereira
Filho”.
Pensei que estava entrando num hospício, mas
fiquei firme. Já sentindo naquele chefe os ecos do Veiga de “Encontro Marcado”,
outro escritor frustrado engolido pela necessidade de “seguir vivendo”, que
acabou numa redação de jornal. Mas na reportagem não havia escritores
frustrados, mas funcionários públicos que tinham no jornal um bico.
Os escritores, frustrados ou não, estavam
entre os redatores, que revisavam os textos dos repórteres. Era o mais novo da
redação em idade, e trocava ideias com alguns redatores sobre leituras,
estrutura de texto, coisas que iam além de “seguir vivendo”. Muitos deles,
poetas e romancistas, alguns talentosos até, tinham que trabalhar em jornal
para subsistir. Tive contato com grandes literatos, como João Antonio, Felix
Athayde, Aguinaldo Silva, Tite de Lemos. Outros, massacrados pelo cotidiano,
sem perspectiva, tomavam porre no boteco da esquina, assim como Eduardo
Marciano.
Do nosso grupo de pretensos literatos, saíram
grandes advogados, embaixadores, economistas. Só eu segui a carreira de
jornalismo. Minha veia literária dirigiu-se a contos escritos quase na clandestinidade,
aplacada pelas notícias do cotidiano. Mas, como dizia Moacir Scliar , a quem
sucedi na Academia Brasileira de Letras, o jornalismo é um ramo da literatura”.
Um comentário:
Jornalista também é escritor,concordo.
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