Folha de S. Paulo
É apelativo dizer 'poderia ser meu filho'?
As pessoas enlouqueceram? A humanidade
inteira foi mordida por cães raivosos? Não estou falando dos horrores da última
semana, em Israel e
na Palestina,
mas das reações a eles. Ou, deveria dizer, das comemorações por eles?
Primeiro foi uma parte desmiolada da esquerda
que, mundo afora, diante da barbárie do Hamas,
soltou rojões. Não é uma metáfora: milhares de pessoas se reuniram diante da
embaixada de Israel, em Londres e soltaram fogos de artifício, felizes. Aqui no
Brasil, internet afora, também foi um foguetório. Afinal, na luta
anticolonialista, vale tudo.
Mal me recuperei do asco, vieram as reações da direita, legitimando a morte de civis na Faixa de Gaza. Dizendo que é isso aí mesmo, tem mais é que bombardear todo mundo. Cortar a água, a luz, a entrada de alimentos e remédios para dois milhões de pessoas. Afinal, na luta antiterrorista, vale tudo.
Que que deu nessa gente? Eles não descendem
de gerações e gerações que mataram ou morreram no Oriente Médio.
Não tiveram um irmão, uma filha, uma mãe vitimada pelo outro lado. Tô falando
de pessoas que nunca pisaram no Oriente Médio, pessoas cujas entranhas não
fervem na pira da vendeta: brasileiros, pacatos alunos da PUC, senhoras
patuscas da Pompeia, o taxista do aeroporto, meu primo.
Estou há dias tentando escrever sobre o
assunto. Estou há dias apagando o que escrevo. Uma hora o que leio na tela me
parece pouco, diante da treva. Outra hora me soa apelativo. "Crianças
queimadas" eu já escrevi e apaguei dez vezes. Mas como tentar chacoalhar
essas macacas de auditório da selvageria, essas cheerleaders da crueldade sem
descrever a realidade com a contundência que ela tem?
Bebês degolados por adagas do Hamas. Um
menino de uns oito anos, inteiro queimado por um míssil israelense. É apelativo
dizer "poderia ser meu filho"? Ou "poderia ser seu filho"?
(Uma vez que, pelo filho dos outros, estamos vendo, ninguém se compadece). A mulher
com a calça ensanguentada. A mulher seminua na traseira de uma caminhonete.
Escolas bombardeadas. E gente batendo palma, dando coraçãozinho, compartilhando
artes descoladas, hypando a morte.
Foram as redes sociais que nos jogaram neste
fosso, incentivando um binarismo tacanho? Ou é esquerda ou é direita. Ou é
colonizador ou é oprimido. Ou é LGBTQA+ ou é defensor do patriarcado. Ou é
heterossexual ou é um invertido que deve ser curado, calado ou morto. Ou é
preto ou é branco. Não existem tons de cinza, e qualquer ato do meu lado está
certo, qualquer ato do outro lado está errado.
Se um empresário espancar uma velhinha, boa
parte da direita vai defendê-lo. Se uma pessoa trans envenenar a mãe, boa parte
da esquerda vai defendê-la. Cada lado tem em seu Vade Mecum palavrinhas mágicas
que, uma vez pronunciadas, acreditam eles, encerram qualquer discussão.
Comunista. Decolonial. Vai pra Cuba. Heteronormativo. Ideologia de gênero.
Lugar de fala. Lei Rouanet. Mansplaining. A lista é longa.
Os rótulos, a serem colados em quem desvie um
milímetro dos dogmas do grupo, têm um efeito duplo. Negam qualquer dignidade ao
rotulado, ao mesmo tempo em que produzem uma total paralisia no raciocínio de
quem os aplica. Se a doença acometesse apenas o cérebro, menos mal, mas também
ataca o coração, que, todos sabem, é um órgão diretamente ligado à visão. Uns
olham um menino palestino e enxergam "o" terrorismo. Outros olham um
bebê israelense e enxergam "o" colonialismo. E todos vão pras redes.
E bombardeiam violência. E depois voltam pra colher os likes, comentários e
reposts —seus despojos de guerra. As pessoas enlouqueceram?
*Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem
2 comentários:
Interessante! Não acompanhei e nem vi as reações que o autor descreve no primeiro parágrafo, "comemorando" os crimes do Hamas, mas suponho que possam ter mesmo ocorrido. Ele se concentra nos aspectos modernos da sociedade e das mídias digitais, que polarizam ainda mais os cidadãos. Mas poderia ter mostrado um pouco do CONTEXTO histórico e geográfico dos conflitos do Oriente Médio, que explicam muito das recentes violências de parte a parte entre os contendores, que boa parte dos colunistas pouco considera ou mesmo nem quer considerar. Para vários, a questão começa com as atrocidades do Hamas há alguns dias, mas esquecem todas as ações do TERRORISMO DE ESTADO de Israel e a desobediência deste país às decisões da ONU por décadas e décadas.
E tem gente querendo justificar o terrorismo,o mundo acabou mesmo!
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