Folha de S. Paulo
Não são as ambições que são excessivas, mas
nossas injustiças que são muitas
A mais democrática e generosa de nossas
Constituições completou 35 anos nesta semana. Ponto culminante do processo de
transição para a democracia,
estabeleceu como objetivos fundamentais da República "construir uma
sociedade livre, justa e solidária"; "garantir o desenvolvimento
nacional"; "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais
e regionais"; por fim, estabeleceu como meta "promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outra
forma de discriminação".
Fruto de uma intensa participação popular, que invadiu o Congresso Nacional, e de uma ampla negociação entre os principais atores políticos, econômicos e sociais, o texto foi recebido com uma forte dose de ceticismo por setores conservadores, que não apenas vaticinaram a sua morte precoce como também sempre resistiram à sua implementação.
Poucos meses antes da aprovação da versão
final do texto, o então presidente Sarney buscou
constranger a Assembleia, assegurando que a nova Constituição tornaria
"o Brasil ingovernável". A resposta de Ulysses
Guimarães foi imediata. Além da aprovação por 403 votos, contra
míseros 13 votos desfavoráveis (55 abstenções), proferiu discurso retumbante,
afirmando que "ingovernável [é] a fome, a miséria, a ignorância, a doença
inassistida..."
A Constituição não apenas sobreviveu, mas
também tem contribuído para inúmeros avanços ao longo desses 35 anos, como a
ampliação da expectativa de vida, do acesso à educação e à saúde, redução da
pobreza e também avanços significativos no campo das relações raciais e de
gênero ou do meio ambiente. Há que se reconhecer, no entanto, que ainda estamos
muito longe de alcançar as aspirações traçadas em 1988.
A desigualdade permanece abissal, submetendo
largas parcelas da população brasileira a um cotidiano degradante. As
populações negras e pobres, que habitam nossas periferias sociais, ficam ainda
expostas a uma carga brutal de violência e
discriminação, apontando para um fracasso de nossa democracia de assegurar a
todos os direitos mais básicos.
A quem devemos atribuir esses fracassos? Como
salientou o vice-presidente Geraldo
Alckmin, na celebração dos 35 anos da Constituição ocorrida no Supremo Tribunal
Federal: "[a Constituição] não é ambiciosa, ela é correta. Ela não é
excessiva, ela é justa. Ela não promete demais. Nós é que fizemos de menos até
agora e estamos ainda muito em débito com o futuro que ela previu".
De fato, não são as ambições que são
excessivas, mas nossas injustiças que são muitas. Do que serviria uma
Constituição indiferente a essas injustiças? Penso no artigo 227 da
Constituição, ao estabelecer que "é dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". O que deveria
ter dito de diferente?
O que Alckmin parece estar nos dizendo é que,
se há algo errado na vida da República, não são as ambições ou os direitos
inscritos na Constituição, mas sim na sua "casa de máquinas", na qual
opera o corpo político, que parece mais interessado em maximizar seus
interesses do que cumprir com suas obrigações constitucionais.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
Um comentário:
Excelente! É bem isto.
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