sábado, 7 de outubro de 2023

Carlos Góes - É proibido tropeçar

O Globo

Para saber se um lugar é desenvolvido, deve-se olhar para os canteiros: cuidar deles exige estruturar serviços

Numa rua qualquer havia muitos buracos, e muitas pessoas tropeçavam. Os cidadãos passaram a reclamar para a prefeitura até que um vereador teve uma ideia genial. Aprovou-se uma nova lei em que se resolvia os problemas. Numa manhã qualquer, um encarregado de negócios da prefeitura colocava um cartaz na parede da rua: “É proibido tropeçar.”

Esse parágrafo é, claro, uma piada. Mas a forma como os legisladores, tecnocratas, promotores e juízes brasileiros lidam com os muitos problemas que a sociedade brasileira enfrenta, por vezes, não é tão diferente da piada.

Por vezes, parece haver a percepção de que, para prover serviços para a população, basta escrever num pedaço de papel que medidas devem ser cumpridas, sem necessariamente criar as condições para que elas se realizem. Nem, tampouco, calcular os custos e benefícios de cada medida.

A construção de serviços públicos não é simples.

Se a Constituição Federal de 1988 promulgou uma série de direitos, muitos até hoje não materializados, a provisão material deles seria construída ao longo das próximas décadas. A carga tributária brasileira subiria de cerca de 26% a 32% do PIB entre 1995 e 2002.

Foi no governo Fernando Henrique que boa parte do Estado Social, sonhado pelos constituintes, tomaria forma real. Sem dinheiro para financiá-lo, ele seria mera quimera.

Mas o dinheiro não é infinito. Há, muitas vezes, conflitos sobre recursos escassos — e quem arbitra sobre esses direitos é o Judiciário.

Você provavelmente já ouviu falar dos casos mais midiáticos, como pessoas entrando na Justiça para conseguir acesso a remédios de custo muito alto pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Nesses casos, fica a pergunta: como arbitrar entre o direito individual e o custo de oportunidade social, já que o orçamento é limitado? Comprando-se o remédio de alto custo, beneficia-se uma pessoa, mas talvez deixe-se de comprar outros remédios que beneficiariam milhares de terceiros. Qual direito prevalece?

O juiz dificilmente se faz essas perguntas, muitos menos os cálculos.

Outro caso, menos famoso, você provavelmente desconhece, é que o Judiciário interfere até na contagem da população oficial dos municípios. Como o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e outros tipos de distribuições de recursos são proporcionais à população dos municípios, as prefeituras têm incentivos para sempre usar as contagens mais favoráveis a si.

E não é sem razão que os prefeitos fazem isso. Um trabalho de ótima qualidade do economista Raphael Corbi, da USP, junto a Elias Papaionnou e Paolo Surico, mostra que municípios que saltam de um intervalo para o outro do FPM acabam tendo um belo estímulo na economia local, gerando novos empregos.

Há, atualmente, 29 municípios cuja população é definida por decisão judicial, segundo as notas de rodapé das tabelas do IBGE. Há dois problemas aí. Os juízes não têm o conhecimento técnico dos empregados do IBGE para definir a melhor contagem. E a distribuição de recursos é um jogo em que, para alguém ser beneficiado, outros são prejudicados — o que em economês chamamos de “jogo de soma zero”.

Uma boa notícia é que o Judiciário parece querer inovar nessa área. O Supremo Tribunal Federal, na presidência do ministro Luís Roberto Barroso, anunciou a criação de uma assessoria econômica para o STF.

A ideia é que, nos casos em que as decisões da Corte impliquem alto impacto econômico ou requeiram uma análise de custo-benefício, a assessoria possa aconselhar os ministros. Levar ao Judiciário pessoas com treinamento em economia e com familiaridade com conceitos como custo de oportunidade ou externalidades pode melhorar em muito a qualidade das decisões judiciais. E pode facilitar a arbitragem de direitos de forma realista e responsável.

Como disse, a construção de serviços públicos não é simples.

Outro dia meu pai me brindou com uma pílula de sabedoria sobre economia política. Ele me disse que, para saber se um lugar é desenvolvido, em geral basta olhar para os canteiros. Não porque a grama e as flores em si digam algo. Mas porque, para cuidar deles, você precisa planejar uma agenda; contratar funcionários; distribuir fundos; fazer análise de custo-benefício; e, enfim, estruturar serviços.

E essa qualidade institucional se constrói no longo prazo, com os vários mecanismos que já discutimos nestas páginas. Não basta uma decisão judicial nem pendurar um cartaz exigindo que a grama cresça.

 

Um comentário:

Daniel disse...

Interessante e prático.