Nova tragédia expõe poder crescente do ‘Estado paralelo’
O Globo
Na semana em que governo exibiu seu plano
para a segurança, assassinato de médicos no Rio chocou o país
Na mesma semana em que o governo federal
divulgou um plano insuficiente de combate ao crime organizado, na mesma semana
em que completou 35 anos a Constituição que garante a todos direitos como vida,
segurança ou justiça, nesta mesma semana o Brasil ficou estarrecido com um
episódio trágico, que expôs de modo cruel os limites do Estado e da lei no
território nacional.
Quatro ortopedistas vieram de São Paulo ao Rio participar de um congresso num hotel na Barra da Tijuca. No fim da noite, atravessaram a avenida para tomar cerveja num quiosque diante da praia. Um deles fez uma selfie dos quatro sorrindo, sem saber que minutos depois seriam alvejados por 33 tiros, disparados em 25 segundos por quatro bandidos, saídos de um carro que depois partiu em disparada. Três médicos morreram na hora, um foi internado em estado grave. O crime, por si só repugnante, foi sucedido por um roteiro de explicações e desdobramentos que despertam ainda mais revolta.
De acordo com a versão apresentada por
investigadores, os atiradores confundiram um médico com um miliciano que mora
nas redondezas, recém-libertado da prisão e alvo de vendeta, prática comum no
mundo do crime. A valer tal versão, os médicos foram “dano colateral” na guerra
entre milícias e facções criminosas. Um fato cruel é exibido para corroborá-la:
menos de 24 horas depois, a polícia descobriu quatro homens baleados, mortos e
abandonados em carros. Dois foram identificados como assassinos dos médicos, vítimas
de justiçamento ordenado em razão do “engano” cometido.
Faixa azul para motos é ideia que merece
estudo para ser levada adiante
O Globo
Autorizado em dez avenidas de São Paulo,
corredor exclusivo já demonstrou resultados promissores
No trânsito hostil das grandes cidades
brasileiras, disciplinar a circulação de motos em meio ao fluxo caótico de
carros, ônibus e caminhões é um desafio. Por isso mesmo, é bem-vinda a decisão
da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) de autorizar a Prefeitura
de São Paulo a
instalar a faixa azul para motos em mais dez avenidas da cidade, além de
renovar a permissão para as já existentes. Boas iniciativas merecem ser
ampliadas, especialmente num setor em que são escassas.
A faixa azul, que delimita um corredor para
motos, começou a ser testada na cidade de São Paulo em janeiro de 2022, na
Avenida 23 de Maio, principal artéria do corredor Norte-Sul. Havia receio de
que os motociclistas não aderissem à ideia. Ou de que a inclusão de uma nova
faixa em avenidas que mantêm a mesma largura pudesse causar engarrafamentos. Em
anos anteriores, experiências semelhantes haviam fracassado. Mas os temores não
se confirmaram.
Com três meses de funcionamento, estudos
mostraram que os congestionamentos haviam caído, porque as motos não ficavam
mais ziguezagueando entre os carros. O número de acidentes também não foi
significativo: dois dentro da faixa e oito fora, todos sem gravidade. Até hoje,
segundo a Prefeitura, não há registro de acidente com morte nas faixas.
A experiência de São Paulo já inspira outras
capitais. A Prefeitura do Rio também planeja implantar as faixas azuis em vias
da cidade. O objetivo é reduzir acidentes. De acordo com a Secretaria de Saúde
do município, motociclistas estiveram envolvidos em 62,6% das 23.971
ocorrências com vítimas (quedas, colisões com outros veículos, atropelamentos)
entre maio de 2022 e maio de 2023.
A circulação de motos nas cidades brasileiras
cresceu enormemente, sobretudo durante a pandemia, quando os serviços de
entrega dispararam em meio aos protocolos de isolamento para prevenir a
disseminação do coronavírus. Mesmo com o contágio sob controle, o mercado
permaneceu aquecido. Estima-se que 1,5 milhão de motociclistas trabalhem com
entregas no país, 350 mil na capital paulista.
Com mais motos em circulação, o número de
acidentes também aumentou. Segundo o Ministério da Saúde, entre 2011 e 2021 as
internações de motociclistas em unidades do SUS subiram 55%. Um levantamento da
Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet) em 2021 mostrou que
motociclistas estavam envolvidos em 54% dos acidentes de trânsito no país.
Evidentemente, o projeto das faixas azuis —
não previstas no Código de Trânsito Brasileiro e ainda em fase experimental —
precisa ser monitorado de perto. A Senatran determinou a realização de
relatórios periódicos com informações como acidentes. Se ficar comprovado que
elas dão bom resultado, como se constatou até agora, o modelo deveria ser
levado a outras cidades que enfrentam os mesmos problemas. Qualquer iniciativa
para tornar o trânsito menos selvagem e reduzir acidentes deve ser incentivada.
Inflação resistente
Folha de S. Paulo
Diretor do BC aponta que alta dos preços não
está domada, o que demanda cautela
O maior choque
inflacionário global das últimas décadas, na esteira da pandemia de
Covid-19, pegou de surpresa praticamente todos os principais bancos
centrais do mundo, que foram obrigados a elevar rapidamente os juros.
Estancar a alta dos preços passou a ser a
prioridade das autoridades monetárias, mesmo ao custo de uma possível recessão,
que felizmente até agora não ocorreu.
Ao contrário, o vigor da economia nas
principais regiões surpreende ao mesmo tempo em que a inflação cai
na maioria dos países, sinal de que a subida dos juros até aqui teve resultados
benignos.
No caso brasileiro, o Banco Central foi
pioneiro entre seus pares, tendo iniciado o longo ciclo de aperto na taxa
básica —de 2% para 13,75% ao ano— em 2021.
Nos últimos 90 dias, já houve redução
de um ponto percentual. A trajetória da inflação se mostra positiva:
a variação do IPCA deve cair de 5,78% em 2022 para 4,9% neste ano, segundo
pesquisa do BC.
Enquanto isso, a economia continua a crescer,
desafiando prognósticos de desaceleração. O avanço esperado por analistas para
o PIB deste
ano passou de 0,7% em janeiro para 3%, com desemprego em queda. Fatores como a
expansão da safra e dos gastos públicos ajudam a explicar o desempenho.
Outros bancos centrais, como o Fed americano,
estão um pouco atrás em seu trabalho e, se não subiram mais suas taxas,
tampouco sugerem que haverá cortes de juros ainda por muitos meses.
Guardadas essas diferenças, a desinflação sem
grandes custos até aqui sem dúvida se mostra um padrão global. Mas é preciso
cuidado para não cantar vitória prematuramente. Ainda que o caminho trilhado
tenha sido favorável, o final pode ser mais acidentado.
A imagem da última milha que reserva desafios
tem sido usada com frequência. O diretor de
política monetária do BC, Gabriel Galípolo, a empregou ao reconhecer
que a convergência ainda é parcial.
Evidência disso são as expectativas de
inflação, de 3,87% e 3,5% para os próximos dois anos, ainda acima das metas
oficiais.
A prudência de Galípolo é bem-vinda. É
preciso cautela diante das incertezas globais e também dos problemas
especificamente brasileiros. Além da resistência da inflação dos serviços, o
risco de descontrole fiscal está presente.
Mesmo que haja expectativa generalizada de
descumprimento da meta de zerar o déficit federal em 2024, o governo Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT) precisa persegui-la.
As decisões do Executivo nessa frente serão
cruciais para determinar quão acidentada será a jornada de controle da inflação
e mesmo da estabilidade da economia. É bom que o BC esteja atento a isso.
Amazônia seca
Folha de S. Paulo
Custo social da estiagem no bioma deveria
conferir urgência à pauta climática
Será difícil afastar da memória cenas
dantescas de uma centena
de botos mortos em lago de Tefé (AM), no médio Solimões. Uma
das piores estiagens já presenciadas castiga a Amazônia desde
setembro e, apesar de previsível, pouco se pôde fazer para prevenir seu
impacto.
A falta aguda de chuvas em período que já é
mais seco na região se relaciona com fenômeno climático de escala planetária: o
aquecimento anormal de águas do oceano Pacífico, conhecido como El Niño.
Julho, agosto e setembro tiveram as
temperaturas mais altas já aferidas pelo homem, e assim deve ser o ano de 2023
—El Niño também é responsável por isso. No Brasil, o evento ocasiona menos
precipitação nas regiões Norte e Nordeste e elevação no Sul.
Aumento do calor e chuvas escassas estão
dizimando lavouras e tornando os rios amazônicos intransitáveis. Isso num
quadrante do território em que transporte fluvial é quase sempre o principal
meio de abastecimento.
O governo federal estima que precisará assistir meio milhão de pessoas por lá,
com mais de 50 municípios em situação de emergência. A hidrelétrica Santo
Antônio, no rio Madeira, quarta maior usina do país, teve de
interromper a geração de eletricidade devido à vazão
insuficiente.
Apenas uma medida de socorro, a dragagem de
cursos d’água, deverá consumir R$ 138 milhões em recursos federais. Somem-se a
isso gastos com saúde, cestas básicas e combate a queimadas intencionais e
incêndios florestais que já enchem as cidades de fumaça.
O dano social e o impacto financeiro da seca
são imensos. Imagine-se então quanto custaria a concretização da ameaça de
colapso irreversível do bioma previsto por cientistas —alguns deles desconfiam
que já possa estar em curso.
Governantes só podem remediar a calamidade,
sem dúvida agravada pelo aquecimento global, porque procrastinaram o
enfrentamento das mudanças
climáticas.
Já se realizaram 27 reuniões anuais da
convenção das Nações Unidas sobre o clima, desde o longínquo 1992, sem que o
mundo tenha avançado no corte de emissões de gases do efeito estufa. No Brasil,
o reconhecimento da gravidade do assunto ainda patina.
A derrubada da floresta para pecuária e plantio constitui a maior fonte de poluição climática por aqui. Conter esse avanço é a maior contribuição que o Brasil pode dar para mitigar a crise do clima.
Uma utopia que é a cara do STF
O Estado de S. Paulo
Julgamento no Supremo de ação sobre situação
nos presídios escancara visão ingênua, disfuncional e autoritária do papel da
Corte, como se a Justiça fosse capaz de substituir a política
Não foi por acaso – e também não foi bom
sinal – que o ministro Luís Roberto Barroso tenha pautado o julgamento, como o
primeiro de sua gestão, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) 347, que trata da situação do sistema prisional brasileiro. Expressão do
fenômeno da judicialização da administração pública, o caso se vale do conceito
de “estado de coisas inconstitucional” para impor obrigações ao Executivo, em
seus vários níveis.
Não foi um bom sinal já que significou
colocar o Supremo Tribunal Federal (STF), logo de cara, perante um caso que
tensiona os limites de sua competência e a relação com os outros Poderes. É o
oposto da necessária autocontenção do Judiciário. Mas não é só isso. Esse
julgamento manifesta uma visão utópica, ingênua e, em boa medida, autoritária
do papel do STF.
Como resultado da ADPF 347, o plenário da
Corte reconheceu “o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário
brasileiro” e determinou uma série de medidas, como a apresentação, em até seis
meses, pelo governo federal de um plano de intervenção para resolver a
situação. Esse planejamento deverá ser elaborado em conjunto com o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e “em diálogo com instituições e órgãos competentes e
entidades da sociedade civil”.
Depois, os Estados e o Distrito Federal
deverão apresentar seus respectivos planos, a serem também homologados pela
Corte. “Em caso de impasse ou divergência na elaboração dos planos, a matéria
será submetida ao STF para decisão complementar”, diz a decisão.
Haja pretensão. Sob pretexto de dar
efetividade aos direitos constitucionais, o STF se coloca em posição de
coordenador-mor do País, criando obrigações para os outros Poderes e definindo
o modo como elas deverão ser executadas.
É evidente a violação massiva de direitos
fundamentais nos presídios. Como também é evidente a violação massiva de
direitos em diversas áreas da vida nacional. São problemas gravíssimos, que o
Estado, em suas várias esferas, tem de enfrentar de modo responsável. Mas isso
não autoriza o STF a ser o gestor das políticas públicas nacionais.
O art. 102, § 1.º da Constituição e a Lei
9.882/1999 dispõem sobre a ADPF, que “terá por objeto evitar ou reparar lesão a
preceito fundamental, resultante de ato do poder público”. O escopo de uma ADPF
não é alçar o STF ao posto de planificador da vida nacional. Ele é mais
reduzido e, por isso mesmo, mais eficaz. “Julgada a ação, far-se-á comunicação
às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados,
fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito
fundamental”, diz o art. 10 da Lei 9.882/1999.
A ADPF tem o objetivo de questionar atos
específicos do poder público. De nada serve uma ação que se propõe a mudar todo
o sistema prisional. Os problemas são muito mais sérios e mais complexos – e,
precisamente por isso, existem Três Poderes. De outra forma, bastaria o
Judiciário.
Sem previsão legal ou constitucional, a
declaração de “estado de coisas inconstitucional” é rigorosamente inútil para a
resolução do problema. Afinal, simplesmente afirma o que todos já sabem. Mas
há, nessa história, um efeito especialmente deletério para o funcionamento do
Estado Democrático de Direito: o STF sente-se autorizado a invadir seara
alheia. Com isso, o Executivo, responsável por resolver o problema, lava as
mãos. Com a agravante de que o Judiciário, que tomou para si a resolução do
caso, não tem capacidade nem estrutura para solucionar efetivamente o problema.
Certamente, é simbólico iniciar uma
presidência do STF pondo os holofotes sobre um fato absolutamente degradante da
vida nacional – a situação dos presídios. Antes, no entanto, esse julgamento
escancara a ilusão de um Judiciário que, encantado com sua própria imagem, se
acha capaz de corrigir as profundas mazelas sociais por meio de sentenças
judiciais. O fruto dessa utopia não é um país melhor, mas uma cidadania
desmobilizada, à espera de soluções mágicas. Eis o resultado da pretensão da
Justiça de assumir o papel da política.
Enxugando gelo tributário
O Estado de S. Paulo
Conflitos não são causados pela má índole de
empresas que fazem da sonegação uma prática contumaz, mas por uma confusa
legislação tributária que dá margem a múltiplas interpretações
O governo anunciou que fará uma força-tarefa
para dar fim aos cem maiores processos de execução fiscal do País, que envolvem
valores da ordem de R$ 180 bilhões. A iniciativa visa a reduzir as disputas
judiciais entre o Executivo e o contribuinte, que, ao todo, já teriam
ultrapassado o patamar de R$ 5 trilhões.
De acordo com a procuradora-geral da Fazenda
Nacional, Anelize Almeida, trata-se de um projeto estratégico e de médio e
longo prazos, que, mais do que um caráter arrecadatório, tem como objetivo
atingir maior justiça fiscal. “O objetivo é recuperar créditos que o
contribuinte deveria ter pago e não pagou”, afirmou.
Em entrevista ao Estadão, a procuradora-geral
reconheceu que o governo tem sua parcela de culpa na origem desse problema
tributário. No passado, segundo ela, a eficiência era medida por “não deixar o
processo morrer e levar o assunto até o Supremo Tribunal Federal”. Hoje,
segundo ela, o Executivo federal pensa diferente. “Eficiência é brigar pelas
grandes teses, levar o contencioso para o Judiciário naquilo que a gente
precisa da força da jurisdição, e o que não é a gente desiste”, explicou.
Por um lado, é positivo que o governo tenha
renovado sua compreensão sobre as disputas tributárias. De fato, a cultura do
setor público incentiva o entrevero infindável. Servidores não apenas não têm
autonomia para fazer acordos que deem fim a esses litígios, como ainda podem
ser penalizados – e na pessoa física – caso abram mão de receitas em nome da
União.
Na lista dos principais processos, por óbvio,
estão algumas das maiores companhias do País. A Petrobras lidera a relação das
empresas com maiores dívidas tributárias em execução pela União, com R$ 34,9
bilhões. Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Bradesco, Gerdau, Unilever, CSN
Mineração, Fibria, Atacadão, Recofarma e Itaúsa completam o rol dos dez maiores
contenciosos.
Segundo Anelize Almeida, o governo não
incluiu quaisquer valores relacionados a essas disputas nas metas de
arrecadação do ano que vem – muito embora o espírito dessa iniciativa se encaixe
perfeitamente no plano de recuperação de receitas do ministro da Fazenda,
Fernando Haddad. Ainda de acordo com a procuradora, a lista considera apenas
execuções possíveis de serem cobradas, ou seja, exclui empresas falidas há
muitos anos.
A despeito dessa prudência, não há como
ignorar o fato de que o governo parece mais otimista do que deveria a respeito
de potenciais resultados dessa iniciativa. É de imaginar que a maioria dos
processos esteja há anos ocupando os escaninhos da Justiça. Há, portanto, bons
motivos para duvidar da disposição dessas empresas em abrir mão de causas
bilionárias, defendidas por um dos maiores escritórios de advocacia do País.
Em alguns casos, as teses defendidas por
essas empresas para não pagar impostos têm sido vitoriosas, a depender da
instância judicial. Em outros, ainda que a derrota seja provável, vale a pena
apostar na morosidade da Justiça para adiar despesas. Ao contrário do que diz o
ditado popular, nesses processos basta um querer para que ambos briguem.
Um caso em especial será acompanhado com
lupa. O eventual aceite da Petrobras nesse tipo de transação certamente
contribuiria com a saúde das contas públicas. Também seria visto como uma
interferência indesejada da União, em prejuízo dos interesses dos acionistas
minoritários da empresa.
Na melhor das hipóteses, o programa servirá
para enxugar gelo. A causa de tantos conflitos tributários bilionários não é a
má índole de empresas que fazem da sonegação de impostos uma prática contumaz,
mas a confusa legislação tributária brasileira, que dá margem a múltiplas
interpretações sobre os valores devidos.
Eis, portanto, a importância de o governo
trabalhar para aprovar a reforma tributária sobre o consumo, em tramitação no
Senado, e preparar as próximas etapas da proposta sobre a renda e a folha de
pagamento. Uma legislação simples e clara, aliada a uma atitude menos
beligerante do Executivo federal, certamente mataria a maioria desses conflitos
ainda no ninho.
Enfim, um indígena na ABL
O Estado de S. Paulo
A escolha de Ailton Krenak como novo imortal
reafirma o valor da pluralidade de visões sobre o Brasil
A eleição de Ailton Krenak para a cadeira
número 5 da Academia Brasileira de Letras (ABL), antes ocupada pelo historiador
José Murilo de Carvalho, falecido em agosto, vai muito além da alvissareira
entrada do primeiro indígena na instituição em seus 126 anos de história.
Ambientalista, filósofo e escritor, Krenak dedica a vida a contar – e preservar
– a História do País do ponto de vista dos povos que o habitam desde antes da
chegada dos europeus, em 1500.
Esse modo indígena de enxergar a natureza e a
história, por séculos assimilado a uma espécie de fantasia folclórica, ganha o
fardão imortal como uma honraria tanto para o escritor quanto para a ABL, que
parece em busca de maior pluralidade de visões sobre o Brasil. Curiosamente,
mas seguindo a tradição de oralidade dos povos indígenas, Krenak não escreveu
seus livros, que são transcrições de entrevistas, palestras e discursos. Em sua
obra mais famosa, Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Krenak recorre ao preceito
fundamental indígena de nunca dissociar o homem da natureza para propor uma
nova forma de a humanidade planejar o seu futuro.
Foi uma feliz coincidência o fato de que a
eleição entre os acadêmicos tenha ocorrido quando se comemoram os 35 anos da
Constituição. Um dos maiores líderes do movimento indígena surgido a partir dos
anos 1970, época que marcou o avanço do regime militar na Amazônia, Krenak teve
participação ativa na Assembleia Constituinte.
Foi histórico o discurso do então jovem líder
no plenário da Constituinte. Vestido com um terno branco, com voz pausada e
firme, Krenak fez um veemente protesto para cobrar do Legislativo reação às
agressões do poder econômico às comunidades indígenas. O único elemento que
levou à tribuna para lembrar sua origem e sua cultura foi uma latinha com tinta
preta de jenipapo. Enquanto discursava, aos poucos ia espalhando a tinta pelo
rosto até que, ao final do discurso, o “luto” havia encoberto toda a sua face.
“Não estamos reivindicando nem reclamando
qualquer parte de nada que não nos caiba legitimamente e de que não esteja sob
os pés do povo indígena. (...) reconhecer às populações indígenas as suas
formas de manifestar a sua cultura, a sua tradição, se colocam como condições
fundamentais para que o povo indígena estabeleça relações harmoniosas com a
sociedade nacional, para que haja realmente uma perspectiva de futuro de vida
para o povo indígena, e não de uma ameaça permanente e incessante”, disse
Krenak no plenário. Em uma entrevista recente, ao rever aquela cena, Krenak,
hoje com 70 anos recém-completados, brincou dizendo que quase não se
reconhecia.
O agora imortal Ailton Alves Lacerda Krenak já é um intelectual que há anos desfruta de projeção e respeito no exterior, tendo suas obras traduzidas em 13 países. Sua eleição para a ABL é, portanto, um significativo reconhecimento, talvez tardio, do valor de seu pensamento e a certeza de que a cultura indígena, por ele representada, não é algo a ser tratado como exótico, e sim como formador essencial e incontornável da identidade nacional
Um comentário:
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