Deficiência nos dados prejudica combate ao crime
O Globo
Fica difícil traçar políticas eficazes quando
os números oficiais registram apenas um quinto dos furtos de celular
Pelas estatísticas do Fórum Brasileiro de
Segurança Pública, no ano passado foram roubados ou furtados no Brasil
precisamente 999.223 celulares, ou quase dois por minuto. Se o número
impressiona por si só, causa ainda mais espanto constatar que nem de longe
reflete a dimensão da violência nas
ruas do país. Os brasileiros que declararam ter sido vítimas de roubo ou morar
com alguém que sofreu esse tipo de crime somam em média o quíntuplo do que
sugerem os dados oficiais, revela um
estudo da
A discrepância é atribuída à subnotificação,
que varia de estado para estado. No Rio de Janeiro, que enfrenta grave crise de
segurança, as vítimas declaradas chegam a quase quatro vezes os registros de
roubo. Na Bahia, que também sofre com o flagelo da violência, são mais que o
quádruplo. Em Sergipe, os dados oficiais representam menos de um décimo das
vítimas.
A subnotificação varia de acordo com o tipo de crime, afirma a coordenadora do estudo, a economista Joana Monteiro, que comandou o Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio entre 2015 e 2018. No caso de roubo de veículos, costuma ser baixa, porque as vítimas precisam do registro para dar entrada no pedido de ressarcimento às seguradoras. Em relação a roubos em geral, os fatores que mais pesam são o tempo gasto para fazer a comunicação e a falta de confiança no resultado, uma vez que os índices de elucidação dos crimes costumam ser baixíssimos.
É verdade que a subnotificação de crimes não
é problema exclusivo do Brasil, mas tem impacto relevante nas políticas de
segurança. Sem um diagnóstico preciso, o planejamento das ações fica
comprometido. Há estados que registram mais, outros menos. Fica difícil saber
se a violência aumentou porque houve mais registros ou porque as ações do crime
cresceram. Nos casos de violência contra a mulher, a discrepância é ainda mais
dramática, apesar das campanhas para incentivar denúncias.
As estatísticas oficiais são importantes para
o planejamento das políticas de segurança. É preciso considerar que as 27
unidades da Federação vivem realidades distintas em relação à compilação de
dados. Muitas vezes gestores caminham às cegas em meio a informações imprecisas
ou pouco confiáveis. Se União e estados querem debelar a violência no país, em
primeiro lugar deveriam conhecer detalhadamente o terreno onde pisam. Para
isso, pesquisas de vitimização como a do IBGE deveriam
ser feitas regularmente e analisadas com os dados oficiais.
É fundamental entender a dimensão da
violência que aflige os brasileiros. Gasta-se muito dinheiro em segurança e,
muitas vezes, gasta-se mal, sem resultados efetivos, porque não se conhece a
realidade. Quanto mais dados estiverem disponíveis, melhor será o planejamento.
“Hoje o sistema de informações sobre segurança é extremamente limitado”, diz
Monteiro. “Costumo fazer uma analogia com a saúde. Se você quer combater uma
doença, precisa saber onde há maior incidência para poder agir. E é preciso ter
várias fontes de dados para mapear bem a doença. Só que na segurança não se faz
isso.”
Tabelamento é pior solução para reduzir juros
do cartão de crédito
O Globo
Se não houver acordo entre bancos e
varejistas, medida entrará em vigor derrubando consumo
Reduzir os juros absurdos de 440% cobrados de
quem entra no financiamento rotativo do cartão de crédito é um desafio que
mobiliza há semanas as principais bandeiras, bancos, redes de máquinas de
débito e crédito, representantes do varejo, Febraban e Banco Central. Todos
tentam encontrar um meio-termo palatável para alcançar um patamar minimamente
compatível com uma inflação abaixo dos 5%.
Os bancos justificam a taxa elevada de juros
do rotativo alegando haver alto risco nas vendas parceladas. Quanto mais deve
quem usa cartões, maior o risco. Estudo do BC constatou que a digitalização dos
bancos ajudou a aumentar as dívidas. De junho de 2019 a junho de 2022, o saldo
devedor apenas dos cartões de fintechs e bancos digitais passou de R$ 14,3
bilhões para R$ 74,1 bilhões. É verdade que isso também reflete a expansão do
novo segmento do mercado financeiro. Mesmo assim, considerando todo o sistema
financeiro, o endividamento de donos de cartões cresceu 79% no período, para R$
302 bilhões. Em junho passado, R$ 77,5 bilhões dessas dívidas giravam no
rotativo dos cartões, o dobro do saldo de R$ 38,5 bilhões um ano antes.
O setor financeiro insiste que limitar o
número de parcelas nas vendas com cartão ajudaria a derrubar as dívidas,
portanto os juros. Na outra ponta, a Associação das Empresas de Cartões de
Crédito e Serviços (Abecs) reconhece que a venda parcelada é uma invenção
brasileira, mas defende que o modelo deve ser mantido. Estudos de economia
comportamental sugerem que a extensão dos pagamentos por prazos longos com
parcelas baixas e juros embutidos — inexiste, na realidade, pagamento “sem
juros” — representa um incentivo ao endividamento.
Na lei que aprovou o programa Desenrola
Brasil, o Congresso estabeleceu o prazo até o final de dezembro para que todos
se entendam e seja enviada ao Conselho Monetário Nacional (CMN) uma proposta de
consenso para reduzir as taxas. Caso isso não ocorra, a lei tabelará os juros
em 100% ao ano.
tabelamento é a pior das soluções. Não
funcionará agora, como não funcionou no passado. A primeira consequência dessa
intervenção indevida no mercado de cartões é que seus emissores se tornarão
mais seletivos, restringindo o acesso de consumidores de renda mais baixa ao
crédito. É o que teme o comércio varejista.
As perdas com o tabelamento certamente
superarão os ganhos. De acordo com os próprios bancos, 75% das compras com
cartão são feitas sem financiamento. Tentar resolver distorções que afetam 25%
das transações abalará todo o mercado. Haverá menos consumo, menos vendas do
comércio, retração nas encomendas e, portanto, menos empregos em toda a cadeia
produtiva e de intermediação. Um mau negócio. A melhor solução é um acordo
entre as partes, para que o tabelamento não entre em vigor.
Centrão pressiona Executivo com criação de
mais emendas
Valor Econômico
A progressão do poder de distribuição de
recursos dos parlamentares retira força política do Executivo
O presidente Lula pretende fugir da armadilha
do contingenciamento de recursos ao se livrar da meta de déficit público zero,
mas mesmo admitindo-se um resultado negativo de 0,5% do PIB ele não evitará
cortes no orçamento. O objetivo do governo é investir mais, sem, porém, deixar
os parlamentares descontentes com eventual limitação de despesas das emendas
para obedecer a metas fiscais. Os deputados não estão ajudando nessa tarefa, ao
ameaçarem criar novos tipos de emendas e pôr mais restrições no cronograma de
liberação dos recursos.
O governo é minoritário no Congresso e tem
uma pesada pauta legislativa, uma combinação que por si só aumentaria o poder
de barganha dos parlamentares, que já vem em uma escalada desde 2016, com um
crescendo de emendas impositivas. O dinheiro necessário para atendê-las chegou
a R$ 40 bilhões no exercício corrente, ou pouco menos de um terço dos recursos
que o Executivo pode aplicar discricionariamente. Na discussão da Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO), o relator Danilo Forte (União-CE), o mesmo que disse
que o governo deveria enviar uma meta fiscal “realista”, propôs a criação de
uma nova emenda, a das bancadas partidárias.
Após a rejeição pelo Supremo Tribunal Federal
das emendas do relator, uma forma de transferir dinheiro sem que o padrinho das
verbas e seu destinatário fossem identificados (e muito menos o objeto de seu
uso), os líderes do Centrão buscam outras formas de obter mais dinheiro. A
maneira encontrada por Danilo é substituir a banida RP 9 pela RP 5, a de
bancada partidária, que conviveria com as emendas individuais (RP 6), a de
bancada estadual (RP 7) - ambas impositivas - e as de comissão (RP 8).
Estima-se com isso que a verba destinada a deputados e senadores chegue a 0,5%
do PIB, ou R$ 49,5 bilhões (O Globo, 10 de novembro).
Há um esforço para que a nova emenda também
seja impositiva, isto é, de execução obrigatória. Forte disse que ela “é muito
importante para democratizar o acesso dos partidos ao Orçamento e dar mais
transparência à execução orçamentária” (Folha de S. Paulo, 8 de novembro).
Nenhuma dessas razões se sustenta. Os partidos já têm acesso aos recursos, pois
cada parlamentar tem direito a emendas individuais, além dos que compõem as
bancada estaduais e integram comissões. A transparência sumiu com as emendas do
relator, que nutrem escândalos na Codevasf.
Se não bastasse o movimento já bastante
avançado de apropriação dos recursos orçamentários, os congressistas têm uma
razão a mais em 2024 para ampliar sua parcela de recursos públicos - é ano
eleitoral. Nas eleições municipais de 2020, o Fundo Especial de Financiamento
de Campanha foi de R$ 2,03 bilhões e nas de 2022, de R$ 4,9 bilhões. As
eleições municipais são mais baratas, porque os candidatos têm de atingir um
eleitorado menor e mais concentrado geograficamente. O valor aprovado na
Comissão Mista de Orçamento, porém, foi de R$ 5 bilhões. O governo propôs R$
939,3 milhões. As legendas ainda dispõem do fundo partidário, de R$ 1,185
bilhão em 2023.
Com as eleições no radar, líderes do Centrão
indicam que podem agir de várias formas para arrumar verbas públicas, todas
inadequadas em relação ao que deveriam ser as emendas parlamentares. Uma
alternativa é eliminar nas emendas individuais a obrigatoriedade de destinar
50% a projetos da área da saúde e deslocar o montante para o fundo de campanha.
A outra é criar mais uma emenda impositiva, como pretende o relator da LDO. Uma
terceira é fixar um cronograma para a liberação das emendas, hoje ao sabor da
discrição do Executivo. Ou os líderes do Congresso podem tentar todas as
alternativas ao mesmo tempo.
O Congresso está se apropriando de poderes
que são do Executivo, eleito para cumprir programas próprios, traduzidos em
planejamento nacional de competência federal, com rol de obras consideradas
necessárias. As emendas, no entanto, são paroquiais, destinadas a currais
eleitorais e com enorme distorção de prioridade na aplicação de recursos
escassos. “O Centrão faz política como se a nação fosse um municipio do
interior”, aponta o sociólogo José de Souza Martins (EU& Fim de Semana, 10
de novembro). Além do orçamento secreto, foram infladas as emendas PIX, nas
quais os destinatários não têm de prestar contas de sua utilização - em uma
canetada em julho, o governo liberou R$ 5,3 bilhões para elas.
A progressão do poder de distribuição de recursos dos parlamentares cerca progressivamente o Executivo, que utilizava a liberação de verbas das emendas para formar maioria em votação de seus projetos. Esse instrumento é vital para ordenar bases de sustentação em um sistema partidário com mais de duas dezenas de legendas, mas ele está desaparecendo. Formar maiorias no Congresso tornou-se uma tarefa muito complexa, em especial diante de pulverização partidária, em que o Centrão tem maioria e líderes determinados a extrair vantagens da fraqueza do Executivo. O governo, que cedeu nacos da administração ao Centrão, terá provavelmente de ceder mais para construir maiorias caso a caso. O poder de Lula diminuiu bastante no seu terceiro mandato, assim como ocorrera com Jair Bolsonaro.
Alhos e bugalhos
Folha de S. Paulo
Esquerda e direita aviltam debate ao usar
apagão contra a privatização da Sabesp
O vendaval que deixou mais de 2 milhões de
pessoas sem energia em São Paulo ameaça causar um apagão também na privatização
da Sabesp, que depende de aprovação da Câmara de Vereadores da capital e da
Assembleia Legislativa.
À esquerda e à direita, críticos oportunistas
correram a utilizar os problemas de gestão da principal concessionária privada
de energia do estado, a Enel, para atacar
privatizações em geral e combater a venda da maior empresa de água e saneamento
do país.
No caso da energia, a empresa reduziu o
quadro de funcionários e elevou seu lucro. Fatos como esses demonstrariam neste
momento o suposto fracasso da gestão privada, que seria repetido na área de
saneamento básico.
A alegada conexão é espúria e os argumentos
são frágeis —só uma análise populista, afinal, pode ser feita apenas a partir
do impacto de um evento extremo. Mas politicamente já há efeito entre
vereadores e deputados estaduais.
Até o governador Tarcísio de Freitas
(Republicanos) tentou se distanciar, dizendo que o contrato da Sabesp não será
frouxo e que o estado continuará na empresa.
O Bandeirantes deveria, isso sim, elevar o
nível do debate e prestar informações melhores à sociedade. É preciso, desde
já, desfazer o mito de que o controle privado de uma concessionária reduz o
controle social sobre o serviço.
É notável que as estatais frequentemente
sejam as que mais descumprem metas. Ocupadas por patronagem política, se
permitem ignorar quem deveria monitorá-las.
O saneamento, afinal, foi predominantemente
estatal nas últimas décadas, e metade dos brasileiros ainda não tem acesso a
esgoto.
A essência de um bom serviço público em áreas
como energia, transportes, telefonia e saneamento não é a propriedade em si,
mas uma regulação robusta. Agências públicas com qualificação técnica devem
assegurar equilíbrio entre os interesses do poder concedente, das empresas e do
usuário.
Serão apuradas responsabilidades da Enel e se
houve falta de investimento em planos de contingência para eventos climáticos
extremos. Falhas regulatórias, aliás, são inúmeras no setor, mas o controle
acionário das empresas nem de longe é o tema mais relevante.
No caso da Sabesp, o projeto prevê venda
parcial em que o governo estadual manterá cerca de 25% do capital. A regulação,
baseada no marco do saneamento, seria desenhada de modo a incentivar ganhos de
eficiência e seu repasse para redução de tarifas. Promete-se, por fim, a
antecipação da universalização de 2033 para 2027.
Esta Folha é favorável à
privatização, desde que tais condições sejam garantidas, e as vantagens,
compartilhadas com o consumidor.
Privilégios em cascata
Folha de S. Paulo
É acintosa a corrida do Judiciário para
aumentar rendimentos, já exorbitantes
Segundo a Constituição, a remuneração dos
membros de qualquer dos Poderes, somadas as vantagens pessoais ou de qualquer
outra natureza, não pode exceder o subsídio mensal em espécie dos ministros do
Supremo Tribunal Federal.
No entanto o Judiciário tem cada vez mais
usado subterfúgios para burlar o teto salarial do funcionalismo. Só no primeiro
semestre deste ano, ao menos
1.534 juízes federais receberam acima do limite.
Uma dessas manobras avançou no Conselho
Nacional de Justiça em meados de outubro, já na primeira sessão sob a
presidência do ministro Luís Roberto Barroso.
Uma resolução garantiu a
equiparação de direitos e deveres de juízes e de membros do Ministério Público —segundo
Barroso, pretende-se combater uma "situação de inferioridade da
magistratura". Na verdade, trata-se de igualar regalias que não possuem
relação com a otimização do acesso da população aos serviços da Justiça.
Ate o parâmetro da remuneração de ministros
do STF é manipulado. Contrariando determinação do Supremo, Tribunais de Justiça
e Ministérios Públicos estaduais estipulam vinculação automática com aumento
salarial de ministros da mais alta corte do país.
Dados de junho deste ano mostram que, em ao
menos 16 estados, houve reajuste de 6% sem o envio de projeto de lei para as
respectivas Assembleias Legislativas.
O risco maior da recente resolução do CNJ é o
efeito cascata. Com base no ato normativo do conselho nacional, prevê-se uma
corrida dos tribunais para turbinar contracheques. Propostas desta natureza já
foram debatidas em cortes estaduais e superiores.
Na última quarta (8), o Conselho da Justiça
Federal criou o direito a até dez folgas mensais ou compensação financeira para
juízes que acumulem funções administrativas ou extraordinárias. Estima-se um
aumento de cerca de um terço na remuneração de parte dos magistrados federais.
O argumento de que altos salários blindam
juízes de sucumbirem à corrupção não pode ser usado como artifício para que a
classe eleve seus vencimentos sem debate transparente com a sociedade.
O Judiciário brasileiro, o mais caro entre os principais países do mundo, joga contra sua imagem ao buscar benesses remuneratórias e mordomias como o evento recém-promovido pelo TRF-6 em uma pousada de luxo em Tiradentes (MG), noticiado por este jornal.
Uma oposição irracional
O Estado de S. Paulo
Senadores se deixam levar pela tóxica
influência de Bolsonaro e expõem falhas da claudicante articulação política do
governo na votação de um tema tão relevante como a reforma tributária
O País assistiu a dois feitos dignos de nota
na semana passada. O primeiro, muito positivo, foi a histórica aprovação da
reforma tributária pelo Senado após mais de 30 anos de debates. O segundo,
extremamente negativo, foi a atuação de Jair Bolsonaro para barrar o avanço da
proposta. Foi, provavelmente, a primeira vez que o ex-presidente se envolveu
pessoalmente na deliberação de um projeto em tramitação no Legislativo,
disposição que ele nunca demonstrou nos quatro anos em que esteve no Palácio do
Planalto.
Felizmente, a sabotagem de Bolsonaro não foi
suficiente para impedir a aprovação da reforma por 53 votos a 24, nos dois
turnos de votação. Foram mais que os 49 necessários, mas uma margem pequena
para um modelo adotado por 174 países no mundo e que dará fim ao manicômio
tributário em que vivemos hoje.
Bolsonaro não conseguiu convencer seu próprio
partido a fechar questão contra o texto – dos 12 senadores do PL, 10 votaram
contra o texto, 1 a favor e 1 se ausentou. Mas sua liderança tóxica se fez
sentir no posicionamento de senadores de outras siglas da oposição, como o PP e
o Republicanos, virou o voto de parlamentares que haviam se manifestado a favor
do texto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e fez o governo ceder em
novas concessões e suar frio no plenário, como mostrou o Estadão.
Que fique claro, não haveria problema no voto
contrário à reforma, desde que os senadores tivessem explicado as razões de sua
discordância. Durante o debate, economistas e tributaristas manifestaram
críticas públicas ao texto. Setores econômicos descontentes com os eventuais
impactos da proposta sobre seus negócios trabalharam com afinco para que suas
sugestões de mudança fossem acatadas pelo relator, senador Eduardo Braga
(MDB-AM).
Havia, também, muito debate sobre a alíquota
final que resultará da união de cinco tributos em um Imposto sobre Valor
Agregado (IVA), embora a premissa da reforma seja a neutralidade, ou seja,
manter a carga tributária atual. Essa preocupação, inclusive, não é de todo
despropositada, pois cada privilégio conquistado deverá majorar a alíquota
padrão. Governos petistas, ademais, sempre demonstraram muito apetite para
aumentar impostos e nenhuma vontade de cortar despesas.
Líder da oposição na Casa, o senador Rogério
Marinho (PL-RN) até mencionou alguns desses aspectos. Mas, como bem disse o
presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), que apoiou a proposta, “se nós,
que somos liberais, não votarmos a favor, vamos defender o quê?”.
Eis a reflexão que toda a oposição deveria
ter feito. O ex-presidente Jair Bolsonaro nunca foi um liberal. Para ficar em
um único exemplo, na votação da reforma da Previdência, no primeiro ano de seu
governo, não trabalhou por sua aprovação, optando por se afastar de qualquer
temática que pudesse gerar algum desgaste à sua figura – e, pior, incentivou,
nos bastidores, que as forças de segurança se articulassem para desidratar o
texto.
Se havia problemas no texto da reforma
tributária, e há aos borbotões, os senadores poderiam ter sugerido mudanças.
Registre-se que muitos senadores o fizeram e tiveram numerosas emendas
acatadas, mas nem assim votaram a favor do texto – muito provavelmente
influenciados por mensagens de Bolsonaro e pelo custo eleitoral de ignorá-lo.
Este tipo de oposição perniciosa, com toda a
certeza, não serve ao País. O sucesso parcial dessa empreitada bolsonarista, no
entanto, não teria funcionado se não fosse a claudicante articulação política
do governo no Senado. De forma arrogante, o Executivo deixou o debate correr
solto por meses e só se mobilizou para impedir a derrota quando o texto estava
prestes a ser votado.
O placar apertado não foi o primeiro recado
enviado pelo Senado e não será o último. Enquanto o governo não reconhecer a
existência desse problema e enfrentá-lo, o ex-presidente aproveitará essas
brechas para tentar reaglutinar forças, ainda que isso signifique posicionar-se
contra uma reforma tão necessária quanto a tributária. O País merece uma
oposição mais qualificada.
Governo lento, destruição veloz
O Estado de S. Paulo
Mais de R$ 4 bilhões repousam no Fundo
Amazônia enquanto a floresta arde com recorde de focos de incêndio; o BNDES fez
apenas dois contratos no ano e o Ibama ainda elabora um projeto
Adensa fumaça dos incêndios florestais que há
dois meses encobre cidades do Amazonas e do Pará é mais um capítulo dramático
da rigorosa estiagem amazônica, que seca o leito dos rios, arrasa a vida
selvagem e devasta a floresta. Uma tragédia que em tudo vai contra a nova ordem
mundial de defesa do clima e que torna incoerente e espantoso o represamento de
R$ 4,1 bilhões no saldo do Fundo Amazônia.
Ao Estadão, o presidente do Ibama, Rodrigo
Agostinho, admitiu que é preciso aprimorar o combate a incêndios e disse que o
instituto deve apresentar, no fim do ano, um “projeto robusto” para usar
dinheiro do fundo no combate à crise. A reação tardia, que tende a acrescentar
milhares de hectares ao amplo inventário de floresta destruída, expõe o
despreparo do governo em lidar com a catástrofe anunciada dos efeitos do
fenômeno El Niño neste ano na região.
O que mais impressiona é que somente agora
está sendo elaborado por um órgão governamental um projeto para usar o dinheiro
de um fundo constituído exatamente para esse fim. É explícita a finalidade das
doações no decreto que o criou, em 2008: investimentos em ações de prevenção,
monitoramento e combate ao desmatamento e conservação e uso sustentável da
Amazônia Legal.
O problema não são os recursos, pois eles
existem. Mas, se há dinheiro, onde estão os projetos? Em recente reportagem do
jornal Valor, o banco estatal BNDES, que administra o Fundo Amazônia, informou
que neste ano foram contratados apenas dois projetos, que, quando concluídos,
não chegarão a R$ 24 milhões. Duas aprovações ao longo de 11 meses – uma delas
ainda sem desembolso – não são um resultado a ser comemorado.
Quanto mais complexa a formulação de projetos
aptos aos recursos do fundo, mais o governo deveria se afastar da atitude
passiva que parece adotar para assumir as rédeas na condução do programa. Para
isso servem, ou deveriam servir, a coordenação técnica do BNDES e os organismos
ambientais federais. Se a proteção da Floresta Amazônica é realmente
prioritária, não faz nenhum sentido a morosidade na aplicação prática de
recursos que chegam de diferentes países para o combate ao desmatamento.
É certo que houve avanço. O Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) atestou que de janeiro a setembro o
desmate na Amazônia foi metade do registrado no mesmo período do ano passado.
Desconsiderando a base de comparação sofrível da gestão anterior – que
inclusive se empenhou, sem sucesso, felizmente, em extinguir o Fundo Amazônia
–, é um bom começo.
Mais importante do que as medidas de combate
aos incêndios, porém, é desenvolver soluções para evitá-los ou, ao menos,
minimizá-los. A seca que se abate sobre a região não é um evento sem
precedentes, embora marque um recorde. Tampouco imprevisto. Ao contrário, há
meses havia alertas meteorológicos para a situação atual, que reduziu a régua
de profundidade do Rio Negro a menos de 12 metros, um espanto para o leito de
um rio que, em condições normais, chega a 90 metros.
O espalhamento dos focos de incêndio, que em
outubro somaram 3.858, um recorde no acompanhamento feito pelo Inpe desde 1998,
ameaça gravemente a saúde da população, que voltou a adotar o uso de máscaras.
Em abril, o presidente americano, Joe Biden,
anunciou a intenção de repassar R$ 2,5 bilhões ao Fundo Amazônia. Em julho, foi
a vez do governo da Suíça. Os contratos foram formalizados em outubro e a
primeira etapa das contribuições somou R$ 45 milhões, 2,9% do total prometido.
Pelo regulamento do fundo, novos aportes ficam condicionados ao sucesso de
investimentos para redução do desmatamento, uma exigência básica para garantir
o rigor no uso do dinheiro.
Estados Unidos e Suíça se juntam à Alemanha e
Noruega como financiadores do fundo. França e Inglaterra também deram sinais de
que vão aderir. A preocupação mundial com a Amazônia é consistente com a busca
pela mitigação da crise climática que põe em risco todo o planeta. Ao Brasil
está reservado um papel de real protagonismo nessa campanha. Mas deve agir o
quanto antes, não no ritmo do bicho-preguiça.
Temor de implosão
O Estado de S. Paulo
Apoio internacional responde ao interesse
legítimo de ajudar a Argentina. Mas tem limite
Há consenso tácito mundo afora de que a
Argentina não pode, de novo, quebrar. Por mais difícil que seja a reversão do
atual contexto de hiperinflação para um ambiente de sustentabilidade, veem-se
há meses gestos de países, credores e organismos internacionais muito claros em
favor de uma saída para o caos econômico já instalado. As apostas feitas
superaram as incertezas sobre a eleição presidencial e a distância dos
candidatos remanescentes ao bom senso na gestão da macroeconomia. Sobretudo,
reforçam a visão de que abandonar Buenos Aires à sua própria sorte adiciona
riscos a um cenário global já conturbado por guerras e restrições monetárias.
Por interesses objetivos, o Brasil não tem se
furtado de contribuir para o equacionamento da crise – na medida do razoável
para não esfolar o Tesouro Nacional. Suas movimentações em favor do desembolso
de US$ 7,5 bilhões pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), logo depois das
primárias eleitorais de agosto, encontraram eco no governo dos Estados Unidos,
sem o qual os recursos jamais seriam liberados. Também a articulação de
Brasília por um empréstimo para a Argentina de US$ 1 bilhão do Banco de Desenvolvimento
da América Latina e Caribe, a antiga CAF, no mesmo período denota o elevado
grau de compreensão sobre os riscos a que o Brasil e a região estão sujeitos se
a Argentina passar do ambiente de recessão e hiperinflação à ingovernabilidade.
O caos iniciado em dezembro de 2001 no país não foi esquecido.
Considerar as decisões do FMI e da CAF como
socorro eleitoral em favor do candidato peronista à Casa Rosada, Sergio Massa,
pode até animar as redes sociais direitistas, mas ignora o que realmente está
em jogo. Convém lembrar que, quatro meses antes de tais deliberações, sete
países desenvolvidos do Clube de Paris haviam acordado com a Argentina o
refinanciamento de uma dívida de US$ 2,4 bilhões. O fundamento de tais
iniciativas está no interesse legítimo de cada um desses atores de impedir uma
debacle total da Argentina. No caso do Brasil, ancora-se em genuíno interesse
nacional.
Por maiores que sejam as falhas de Massa e
dos que conduziram a economia argentina nas últimas décadas – e as medidas
eleitoreiras e inflacionárias adotadas antes do primeiro turno estarão entre
elas –, aceitar passivamente uma perspectiva de ruína e desgoverno não está
presente na equação de países influentes e de organismos financeiros. Cabe ao
peronista e a seu adversário “antissistema” Javier Milei fazer jus à ajuda
recebida. Isso significa abandonar seus programas inócuos e/ou catastróficos e
apresentar projetos factíveis de redução do déficit público, de correção das
políticas monetária e cambial, de controle da inflação inercial e de elevação
do grau de segurança jurídica.
Não há novidade aqui para enfrentar o pior dos males econômicos e sociais, a hiperinflação. Quem quer que vença em 19 de novembro conhece bem o caminho a não ser trilhado e terá responsabilidades iniludíveis. Sobretudo, a de entender que toda a boa vontade externa tem limite.
Novos perigos da inteligência artificial
Correio Braziliense
Mas essa força transformadora está mostrando, aos poucos, que também tem seu lado sombrio, levantando preocupações de todo tipo, inclusive éticas, pelo mundo
Após pouco mais de um ano de seu lançamento,
não dá para negar que a inteligência artificial generativa — que tem como seu
principal representante o ChatGPT — já revolucionou diversas áreas de trabalho.
Mas essa força transformadora está mostrando, aos poucos, que também tem seu
lado sombrio, levantando preocupações de todo tipo, inclusive éticas, pelo
mundo.
A recém-encerrada greve dos roteiristas e
atores de Hollywood já foi uma consequência do mundo pós-inteligência
artificial. Entre outras reivindicações, os trabalhadores dos grandes estúdios
cobravam regras mais claras para evitar que roteiros sejam totalmente escritos
pela inteligência artificial, bem como restrições no uso indiscriminado da
imagem dos atores coadjuvantes. Além de ter o poder de aniquilar o trabalho
criativo, os sindicatos de Hollywood alertam que a automação desenfreada pode
levar a uma produção de conteúdo carente da autenticidade que conecta histórias
aos corações do público.
Outros casos recentes, desta vez no Brasil,
mostraram o aprofundamento dos perigos da inteligência artificial, tanto para
pessoas públicas quanto para anônimos, e tendo principalmente mulheres como
alvo. Primeiro foi a atriz mineira Isis Valverde, que teve diversas fotos
adulteradas para simular o vazamento de imagens conhecidas como “nudes”, como
se ela estivesse sem roupa. As fotos falsas circularam pelas redes sociais como
se fossem autênticas, o que levou a atriz a registrar um boletim de ocorrência
na Delegacia de Crimes de Informática da Polícia Civil do Rio de Janeiro. A
inteligência artificial também foi a ferramenta usada por alunos de escolas
particulares de Belo Horizonte, Recife e Rio de Janeiro para criar versões
falsas de imagens de colegas de sala nuas, em casos ainda mais preocupantes, já
que envolvem adolescentes, ou seja, menores de idade.
A greve dos roteiristas e os sombrios casos
de pornografia falsa gerada por IA revelam uma desconsideração alarmante pelo
trabalho, pela privacidade e pela dignidade das pessoas. Por isso, é imperativo
que a sociedade desenvolva estruturas robustas para prevenir esse tipo de
abuso, e isso deve ser feito tanto pelos governos quanto pelas empresas.
Do lado das companhias que oferecem esse tipo
de serviço, é fundamental que exista uma transparência maior nos algoritmos que
regem a produção de textos e imagens pela inteligência artificial. Também é
necessário que existam meios de identificação simultânea de conteúdos, como
marcas d’água, de modo a comprovar que determinada foto ou sequência de
palavras foi gerada por uma IA.
Falta ainda ao Brasil uma legislação clara
para o uso da inteligência artificial, que leve em conta a atual mudança
tecnológica. Apesar de a criação de montagens pornográficas — principalmente
envolvendo menores de idade — ser crime, a autoria do produto final está em uma
zona cinzenta das leis brasileiras. Para tentar coibir tais abusos, é preciso
que existam regulamentações mais rigorosas e mecanismos claros de
responsabilização pelo uso da IA para a produção de conteúdo criminoso.
A solução não reside em condenar a inteligência artificial — que é meramente uma ferramenta — e, sim, em estabelecer limites éticos e legais para sua aplicação. É preciso compreender que o perigo não está na IA em si, mas na ausência de diretrizes éticas. Como toda nova tecnologia, ela demanda técnicas, direitos e deveres totalmente novos, para que seja bem aplicada. Os alertas recentes já são mais do que suficientes para que esse debate se inicie, tanto nas empresas quanto no Congresso.
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