Valor Econômico
Renovação de benefícios para fábricas de
automóveis no Nordeste demonstram falta de compromisso de Lula com transição
energética
Desde a campanha eleitoral do ano passado, o
termo neoindustrialização vem ganhando força nos discursos de Lula e de membros
de sua equipe. Em artigo assinado em coautoria com o vice Geraldo Alckmin em 25
de maio no jornal “O Estado de S.Paulo”, o presidente anunciou que lançaria uma
“política industrial inteligente”, atenta ao “novo momento da globalização” e
ao “imperativo da mudança climática”.
No caso específico da indústria automobilística, a dupla Lula e Alckmin indicou que o caminho seria surfar na onda da economia verde: “A redução do uso de combustíveis fósseis na indústria automotiva se dará com o carro elétrico, mas também com biocombustíveis”, avaliaram.
Na prática, porém, a teoria é outra. Durante
a tramitação da reforma tributária na Câmara dos Deputados, Lula fez de tudo
para aprovar a prorrogação do programa de incentivos tributários para as
fábricas de automóveis instaladas em Estados do Nordeste e do Centro-Oeste.
A Política Automotiva de Desenvolvimento
Regional foi criada em 1997, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, com o
propósito de estimular a descentralização dos investimentos das montadoras de
veículos no Brasil.
Por uma combinação de pujança do mercado
consumidor e logística favorável da cadeia de suprimentos, o parque industrial
automobilístico brasileiro concentrou-se no centro-sul do país. A lógica do
programa era simples: as multinacionais que instalassem fábricas no Norte,
Nordeste e Centro-Oeste teriam direito a um crédito presumido de IPI que
compensaria as desvantagens de deslocar parte de sua produção para essas
regiões.
Previsto para durar até 2010, os incentivos
foram estendidos por mais dez anos e quando esse novo prazo estava chegando ao
fim, foi prorrogado novamente até 2025. Fazendo valer a frase de Milton e Rose
Friedman de que “não há nada tão permanente quando um programa governamental
temporário”, Lula tentou embutir no texto da reforma tributária na Câmara um
jabuti que faria o benefício valer até 2032, mas a proposta foi derrubada por
apenas um voto. O presidente, no entanto, não desistiu de seu objetivo.
Não é um programa barato. De acordo com a
Receita Federal, a União deixa de arrecadar R$ 5 bilhões por ano em impostos
para estimular a fabricação de carros no Nordeste e no Centro-Oeste.
Esse regime automotivo regional tem
destinatários certos. No Centro-Oeste, beneficia a fábrica da Mitsubishi e da
Suzuki em Catalão e também as atividades da Hyundai e da Chery em Anápolis
(ambas em Goiás). Antes de encerrar suas atividades no Brasil, a Ford também
usufruiu dos benefícios nas suas fábricas de Camaçari/BA e de Horizonte/CE
(onde produzia o Troller).
O grosso dessa renúncia fiscal bilionária é
apropriada por uma única empresa, a Stellantis, que produz os modelos Fiat Toro
e Jeep Renegade, Compass e Commander na sua fábrica em Goiana, em Pernambuco.
De acordo com estudo conduzido em parceria entre o Tribunal de Contas da União
(TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU), a montadora foi agraciada com um
benefício tributário de R$ 4,6 bilhões em 2019.
Os resultados desses incentivos, entretanto,
são bastante questionáveis. Diante de um incentivo fiscal tão grande, os
retornos em termos de desenvolvimento regional são muito limitados. A avaliação
feita pelos técnicos do TCU e da CGU indicam que a fábrica da Stellantis gera
11.258 empregos direitos e indiretos na região, o que indica que cada posto de
trabalho criado tem um custo de mais de R$ 34 mil mensais aos cofres públicos.
Quanto ao estímulo à geração de um polo
industrial na região. Apenas 18 fornecedores de autopeças se instalaram em
Pernambuco para suprir as demandas da Stellantis. Os números levantados pelos
órgãos de controle indicam que a unidade de Goiana adquire apenas 6% de seus
insumos de fábricas nordestinas - o restante continua sendo trazido de
fornecedores no Sudeste (85%) e do Sul (9%).
Olhando o incentivo sob outro prisma, os R$
4,6 bilhões que a União deixa de arrecadar da Stellantis por ano servem para se
produzir em torno de 170 mil unidades de SUVs e picapes. Isso significa que o
governo federal está abrindo mão de R$ 27 mil por carro produzido.
Ao apoiar a renovação do programa de
benefícios regionais tal qual ele funciona hoje, Lula mantém a aposta no
incentivo à produção de veículos de combustão interna, parte deles movida a
óleo diesel, e destinados à classe alta - na direção contrária, portanto, à sua
propagada neoindustrialização baseada na economia verde e no consumo popular.
Durante a tramitação da reforma tributária no
Senado, o relator Eduardo Braga tentou corrigir a distorção e vincular a
prorrogação do programa apenas para a produção de veículos elétricos. A bancada
do governo, porém, reforçada pelo apoio da governadora pernambucana Raquel Lyra
(PSDB), conseguiu aprovar a emenda tal qual Lula pediu - para alegria da
Stellantis.
Caberá agora à Câmara ratificar ou não a
proposta de se estender o programa de incentivos tributários para a produção de
automóveis no Nordeste e no Centro-Oeste até 2032.
Pelo seu alto custo fiscal, seus resultados
limitados e por estimular a produção de veículos movidos a combustíveis
fósseis, a posição do governo Lula nessa questão demonstra que os discursos de
neoindustrialização, transição energética e economia verde não passam de
palavras ao vento.
*Bruno Carazza é professor associado da
Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do
sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
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