segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Sergio Lamucci - As emendas parlamentares e a captura do Orçamento

Valor Econômico

Nessa toada, os congressistas vão se apropriar de fatias cada vez maiores do orçamento, num processo em que não há preocupação com a qualidade do gasto

O processo de captura do orçamento por meio das emendas parlamentares segue em curso neste ano, afetando a qualidade e reduzindo a transparência do gasto público. Se totalmente executadas, a combinação das emendas individuais, de bancada e de comissão vai atingir R$ 35,8 bilhões em 2023, mais que o recorde de R$ 29,3 bilhões alcançado em 2021, em valores corrigidos pela inflação, segundo levantamento do economista Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper. Em 2022, foram R$ 29 bilhões.

O número de R$ 35,8 bilhões leva em conta a dotação orçamentária atualizada, enquanto os anteriores contemplam os valores pagos em cada ano, incluindo restos a pagar de exercícios anteriores. “Havendo contingenciamento ou não execução de emendas até o fim do ano, o valor em 2023 ficará um pouco mais baixo do que os R$ 35,8 bilhões, mas duvido que fique menor que o dos anos anteriores”, diz Mendes.

O recorde poderá ser atingido mesmo com o fim das chamadas emendas de relator, que ficaram conhecidas como orçamento secreto, julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em dezembro de 2022. Metade das emendas de relator foi transformada em emendas individuais obrigatórias, observa Mendes. “Outra parte virou emenda de comissões. Um montante de aproximadamente R$ 10 bilhões voltou para o controle do Executivo, mas, por acordo político, será executado em despesas de interesse dos parlamentares.”

O resultado? “É como se as emendas de relator continuassem a existir”, mas sem a necessidade de identificá-las com o código RP9, diz ele. “Agora há despesas com todas as características de emenda parlamentar misturadas com as despesas discricionárias [aquelas sobre as quais o governo tem controle] do Poder Executivo”, afirma Mendes, chefe da assessoria especial do ministro da Fazenda de 2016 a 2018.

As emendas individuais podem chegar a R$ 21,2 bilhões neste ano, enquanto as de bancada (de autoria das bancadas dos Estados) devem ficar em R$ 7,7 bilhões. De pagamento obrigatório, as duas podem atingir R$ 28,9 bilhões em 2023. Do ponto de vista fiscal, isso aumenta a rigidez do gasto, diz Mendes. “Em um orçamento em que a despesa discricionária é de R$ 195 bilhões, essas emendas consomem 14% desse total”, nota ele, para quem há uma perda significativa em termos de “qualidade e legalidade” das despesas. Um dos problemas é que elas atrapalham o planejamento do gasto. “Em vez de o Ministério da Saúde planejar uma rede hierarquizada de assistência à saúde, com hospitais regionais de diferentes graus de complexidade, os parlamentares vão decidindo onde construir hospitais”, observa Mendes. “Há também o excesso de provisão de serviços públicos (cisternas, ambulâncias, asfaltamento) nos municípios que têm representante no Congresso e escassez nos que não têm. Além disso, os casos de corrupção pipocam todos os dias.”

Por fim, do ponto de vista político, cria-se um desequilíbrio entre poderes, afirma ele, notando que “o Congresso manda no Orçamento, mas não é responsabilizado pelas consequências negativas do desequilíbrio fiscal, enquanto o Executivo paga o custo político da inflação e dos juros altos decorrentes desse problema”. Há também as chamadas emendas de comissão, cujo pagamento não é obrigatório. De autoria das comissões permanentes da Câmara dos Deputados e do Senado, elas podem chegar a R$ 6,9 bilhões neste ano.

As emendas parlamentares também respondem por uma fatia expressiva do investimento federal, comprometendo a qualidade desses gastos. Neste ano, elas devem equivaler a 28% de um total de R$ 72,6 bilhões a serem investidos, considerando os valores empenhados que aparecem no Painel do Orçamento da União, de acordo com o levantamento de Mendes. O empenho é a etapa orçamentária em que se reserva o dinheiro para pagar as obras ou os serviços a serem executados. Em 2022, as emendas parlamentares corresponderam a 19% do investimento; em 2020 e 2021, a fatia ficou na casa de 40%.

Mendes lembra que as emendas parlamentares para esse fim têm como características investimentos pulverizados, de pequeno valor. Cada deputado e cada senador direcionam os recursos para obras tipicamente municipais, diz ele. “Nós vivemos em uma federação. Investimentos em asfaltamento de ruas, muro de arrimo ou construção de quadra esportiva devem ser feitos pelo município, com dinheiro do município. O Orçamento federal é para fazer investimentos de impacto federal: rodovias e ferrovias interestaduais, presídios de segurança máxima, monitoramento ambiental por satélites.” Em resumo, os recursos destinados por parlamentares para o investimento tendem a ser mal alocados, voltados para obras de caráter paroquial.

O que já é ruim pode piorar. Na semana passada, o deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), relator do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), disse que pretende criar um novo tipo de emenda parlamentar, desta vez destinada às bancadas partidárias do Congresso. “Se aprovada essa nova modalidade, voltaremos a ter as emendas de relator, só que com novo nome”, diz Mendes, para quem “evidentemente” haverá uma negociação sobre a alocação dos recursos entre os líderes partidários, o relator do orçamento e os presidentes das duas Casas.

“Em nenhum lugar do mundo as emendas parlamentares têm a dimensão do que ocorre no Brasil, seja em número de emendas, seja em valores”, afirma ele, acrescentando que a ideia de que o Parlamento determina o orçamento em todos os países democráticos é um engodo. “O padrão é o Executivo propor o orçamento e o Legislativo discutir a consistência das projeções e a alocação setorial dos recursos, deslocando recursos da educação para a saúde, ou vice-versa, por exemplo.” Nos países em que os parlamentares fazem indicação de verbas para suas bases, como Estados Unidos e Portugal, os valores são muito menores que no Brasil, diz Mendes. “Em um levantamento que fiz no ano passado, nos EUA as emendas paroquiais representam 2,3% das despesas discricionárias; no Brasil são mais de 14%. Em Portugal, são apresentadas menos de 300 emendas por ano; no Brasil esse número fica próximo de 7 mil.”

Nessa toada, os parlamentares vão se apropriar de fatias cada vez maiores do orçamento, num processo pouco transparente, em que não há nenhuma preocupação com a qualidade das despesas públicas.

 

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